terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Costumava pensar para os meus botões



Costumava pensar para os meus botões - um dia ainda hei-de escrever um livro com a minha história - tendo, contudo, a perfeita noção de que nunca ninguém se iria interessar por ela. O que poderia despertar interesse numa história de alguém a quem o trabalho já fustigava sem dó, o corpo franzino de uma criança que teve a infeliz sorte de ter nascido num berço pobre? Decerto que a ninguém! Mas, ainda assim, crescia-me no peito uma vontade enorme de o contar ao mundo. Queria que o mundo soubesse do meu fado e acreditava que se condoeria perante aquilo, que, na minha inocência, já se me afigurava ser uma injustiça. Contar-lhe-ia dos cansaços de dias infindáveis onde quase não havia tempo para descansos, sob pena de se confundirem com a preguiça. E esta, escorraçava-se como a um cão vadio. De campos de cultivo empoleirados em socalcos impensáveis, por onde carreiros enladeirados se assemelhavam a trilhos de formigas capazes de carregos maiores do que o seu próprio peso. Escadinhas de lajes cravadas em muros de xisto por onde subiam e desciam, sempre a medo, os meus desequilibrios míopes. A carga de trabalhos onde o milho me metia todos os anos. As regas da água do poço ao final do dia, quando já nenhuma voz de ninguém por perto, visto que o lusco-fusco, sorrateiro, a roubar a luz ao sol... Lá na longínqua "desprezos" da minha infância. As urzes e as carquejas a reclamarem a minha presença matinal, de roçadoira em punho e uma corda ao ombro, com gancho de madeira numa das extremidades que parecia envernizado pelo uso que já tinha. Na outra ponta, um nó bem apertado, para que o molho se não desfizesse quando o ugasse e o erguesse até aos ombros, carregando-o por mais de meia hora ou uma hora inteira e até mais, se o fosse roçar mais longe, visto naquele tempo não haver mato ao pé da aldeia e ser preciso correr "seca e meca" até o encontrar no baldio, lá para as bandas da "Cumeada" ou da "Lomba". De maneira que, lá o carregava, a custo, até ao curral das ovelhas, que me agradeceriam mais tarde em ruminações de serenidade. E era assim todos os dias, menos ao Domingo por causa de ser dia santo. E aos dias santos nada de certos trabalhos mais pesados...! Das azeitonas agarradas aos ramos de frondosas oliveiras centenárias, algumas à beira de verdadeiros precipícios, por onde me adentrava e lhes deitava as mãos roxas do frio e do ar da geada, empoleirada numa escada de doze banços, respigando um a um até não haver mais nenhum ramo enegrecido por bolinhas minúsculas. Das vindimas em corrimões incontáveis que ladeavam cada uma das parcelas de cultivo espalhadas por todos aqueles socalcos de encostas inacreditáveis, onde cabazes e cestas de verga se amontoavam em carreira à espera que os levassem até ao alçapão onde, por baixo, a boca aberta de uma esmagadeira empoleirada numa dorna. Das praganas do centeio dos sequeiros, que me picavam as costas e me faziam correr o suor em bica até à eira. Do ancinho que me provocava calos nas mãos mimosas. Da cabeça que me doía sob o derreio das cestas bem cheias de terra que pesava como chumbo, aquando do esbeiramento das terras inclinadas, numa faina imparável, desde o fundo até ao cimo onde as penedas já quase à mostra... E tantas, tantas outras coisas a precisar de serem contadas ao mundo. Coisas que ainda hoje continuam bem vivas na minha lembrança mas que não sei do modo de as contar, temendo não lhes dar a dignidade merecida sem vos aborrecer. Nem sei, tampouco, se o mundo se interessaria de as saber!...

 Cleo

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