quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

São fugazes as memórias que pairam sob as ruínas do tempo



São fugazes as memórias que pairam sob as ruínas do tempo... Um rosto de velha do qual já me não lembra as feições, que se assoma à janela. Urbana era o seu nome. Um monte de gatos de vários tamanhos e cores, a miarem ao seu redor. A loucura do filho Amado, que o sumiço levou de madrugada. Um outro que vivia em Lisboa, o Celestino (essa terra grande e mágica que eu tanto ouvia falar, mas que nunca lá tinha ido apesar de lá ter nascido) que certa vez lhe encheu a casa, onde crianças bem vestidas a trote pelas escadas acima e abaixo, numa correria desenfreada de alguns dias de visita. Talvez tenha sido a única vez que ali entrei, porque me chamaram para lanchar e onde vi e provei, também pela primeira vez, compal de pêssego... Depois veio o silêncio e a solidão que lhe haveria de trazer a morte. Não muito tempo depois, outra vez gente e crianças e barulho e gritos e martelos e rádio a tocar e desassossego constante... Hoje, apenas o silêncio, o imperioso e implacável silêncio a morar dentro e fora destas pedras cansadas, cuja mudez guarda estórias que ninguém irá alguma vez saber. E quem se interessaria? Tudo se apagará com a memória de quem delas ainda se poderá lembrar. Tudo morre um dia!

 Cleo

O preto da roupa que lhe compunha os ossos


O preto da roupa que lhe compunha os ossos era o mesmo que lhe ofuscava a luz radiosa que provinha do profundo céu azul-cinza espelhado no olhar. A viuvez havia-a condenado ao negro perpétuo, onde fora ré sem direito à negação de uma culpa que não era sua. De vez em quando, metia a mão ao bolso do avental e um quadradinho de pano branco a enxugar-lhe as pálpebras rasas de água, que se diluía em esperanças cristalinas de eternos ontens... Apesar do sal que se despenhava das cataratas dos seus olhos e que a impediam de enxergar a nitidez das coisas, nenhum soluço. Ás vezes, à tardinha, ouvia-a cantarolar a saudade das cantigas de outros tempos, que a sua fiel companheira muda, solidão, escutava com a maior das atenções ao mesmo tempo que lhe acariciava a pele fina e enrugada das mãos nuas. Anoitecia janeiros e debulhava agostos, com a mesma alegria que lhe conhecia de sempre. Por vezes, quando fecho os olhos, ainda a encontro curvada sobre a dobra do lençol da cama onde vivia, a remendar qualquer coisa, mesmo aquilo que já havia sido remendado vezes sem conta, até que as tremuras...

 Cleo

Uma malga de vinho no bordo da fogueira



Uma malga de vinho no bordo da fogueira que crepitava o pinho dos galhos verdes, aguardava o aferventamento do caldo entre promessas de calor à alma... do corpo inteiro.
Na panela de três pernas, borbulhava o caldo das couves onde um pedaço de toucinho se abandonava em aferventadas investidas vaporosas. Ao lado, na trempe, a frigideira (a minha avó chamava-lhe pele) onde fervilhavam já, no azeite, duas sardinhas ao sabor do lume brando das brasas. As nossas sombras, enormes, tremeluziam no frontal de madeira que nos separava do resto da casa. O cheiro e o fumo espalhavam-se pelas outras divisões, subindo até ao forro, onde antes se entranhava em duas ou três varas de chouriças e uma manada de castanhas dentro de um cesto pendurado, dissipando-se, por fim, por entre as frestas das lajes frias. Lá fora, o frio cortante da impiedosa geada, que, desde o lusco-fusco, a convidar-nos à demora no aconchego da pilheira. As gargalhadas e as estórias dos lobos e das bruxas, bastavam-nos para uma mão cheia de indizível felicidade.
Ao outro dia, talvez tudo se repetisse de igual forma, à excepção do caldo que em vez de ser de couves aferventadas, era bem capaz de ser de castanhas piladas ou de almece fervido com farinha de milho...


Cleo


De vez em quando, assim sem avisarem, memórias a assaltarem-me a janela do sótão onde tenho guardadas prateleiras e prateleiras de lembranças. Algumas já tão antigas que, se as quisesse ir buscar de repente, não as acharia derivado à desarrumação que por ali impera. Trastes a estorvarem no caminho, que seria preciso mais de um dia inteiro para lhes dar uma ordem. Se pudesse, muitos deitaria-os ao lixo; mas não valeria a pena, pois tenho a certeza de que ganhariam vida outra vez e voltariam mesmo contra a minha vontade, quais almas penadas e teimosas a atentarem-me o sossego dos pensamentos. Por isso, para ali estão de monte, a estorvar-me no caminho e a dificultarem-me a vontade de chegar depressa às coisas que realmente me importam. Como aquela vez em que se andava a apanhar o milho e se iam acartando as espigas para o meio da estrada, ali mesmo, em frente à porta da oficina onde o meu pai trabucava, ora a martelar pregos na madeira, ora a serrar qualquer coisa que se diluía no barulho infernal da máquina de serra. De quando em vez, também a plaina para cá e para lá, num vaivém orgulhoso de lisuras.
Do milho todo que ali estava, carregou-se tanto ou tão pouco, que era uma montanha de espigas maduras que fariam inveja a um montão de brita numa pedreira! E ali mesmo, no meio da estrada onde era suposto passarem os carros mas que se passavam dias e dias sem que passasse qualquer automóvel. De maneira que, também não seria naquele dia que ali haveria de passar algum. De maneira que, no caso de lá vir algum, haveria de roncar ao fundo da rua e num instantinho também se arredavam as espigas mais para o lado para lhe dar passagem ainda que à rasquinha do muro. Mas não. Não passou automóvel nenhum!
Era o milho todo do Quintal, de ambas as Penedas, a de cá e a de lá. Também o do Pomar e ainda o do Sandinho. Aproveitaram-se as ajudas da prima Laurinda da capela, da Silvéria do Zé Albano, da Esmeralda e o Silvano que também trouxe um saquito. E tudo acartado para ali num só dia. De maneira que, da parte da tarde, não se arredou pé dali até se desfolhar tudo,  visto que o estorvo da via pública...
O meu pai ainda foi buscar a sua máquina de tirar retratos, dizia ele que o último grito da altura em que a comprou, ali por alturas dos primeiros anos de sessenta, quando morava em Lisboa.  Apontou o olho do fole para nós, todos sorridentes, entre os folhos e as barbas de milho, e um tiro de flash a levar-nos lá para dentro... Mas nunca se chegou a revelar o rolo que acabou por se estragar no interior da máquina. Uma pena, isso é que foi! Sendo assim, deste episódio só se salvaram mesmo as imagens que retive na memória e com as quais aqui relatei, o melhor que pude, criando este retrato a preto e branco.

Cleo

De tempos a tempos


De tempos a tempos, o tempo volta embrulhado no manto da saudade, e, qual incómoda pragana de centeio a picar na pele por dentro da camisola... O tempo impregnado de saudade, agarrado às paredes da alma.
E é tempo de invocar memórias de um outro tempo, que povoam o sótão das lembranças daqueles que as guardaram e delas se alimentam, quando já pouco mais lhes resta desta vida. As desimportâncias a encherem de sombra a solidão dos dias... E fala-se de gente que já aqui não mora, por via de se terem finado. Relembram-se episódios ocorridos há muito tempo onde alguém a tornar a este mundo, na lembrança e no dizer de outro alguém, por um coisito de tempo. Fala-se disto e daquilo, de tudo e de nada...

Enxota-se a saudade pra longe. Faz bem à alma, aliviando-a do peso do diabo do tempo que a carrega, e ao mesmo tempo, vai-se enganando a solidão dos que ainda por cá andam.
Cleo

Sentada no cimo de um dos montes da Serra do Açôr, numa das fraldas da Deguimbra mas virada para o nascente por via de não perder pitada do exuberante espectáculo da chegada do nosso astro rei (Sol) a cada novo dia, que, generosamente, lhe vem aquecer e iluminar o âmago, sorri para a vida uma pequena aldeia de seu nome Pai das Donas.
Mesmo à sua frente, outras aldeias se desenham em salpicos brancos sobre o verde da encosta. Lá estão os Pardieiros, o Monte frio e a Relva Velha. Lá em baixo, mesmo ao fundo do vale, ergue-se em forma de cavalo a galope (sempre foi assim que se me afigurava quando para ela olhava da minha janela), a majestosa Benfeita. Terra grande com sede de freguesia sob a qual girava a social vida de todas as outras; quais servas abelhas em torno da colmeia real. Coisas mais ou menos importantes eram tratadas ali. Havia ainda os correios, o posto médico, a junta de freguesia, a igreja matriz para a missa de todos os domingos, a loja de panos e atoalhados da Xica (que à semana também era sardinheira e nos vinha rogar a sardinha à porta, mas aos domingos vendia peças a metro ao lado do marido por detrás do balcão de madeira da sua loja para os vestidos novos das moças casadoiras, que haveriam de ser feitos por medida na costureira). Havia ainda a padaria à Ponte Fundeira e, claro, duas lojas de mercearias. A do Péssimo e a do "correio". A do Ti Zé Maçarocas era a que mais freguesia tinha e para onde se encaminhavam os de fora, já de alma purificada depois da missa, em virtude de nas suas aldeias quase nada haver e sempre era preciso algum açúcar para meter no café de manhã, bem como massa ou arroz para desenfastiar das batatas e dos feijões que a terra dava com fartura. Ah, e claro, o fiel amigo bacalhau, o atum e mais alguma coisita que fizesse falta e não houvesse nas arcas ou na salgadeira, dado que a panela das aflições não durava para sempre...

Gente simples povoava quase todas as casas, bem diferente dos dias de hoje, que se contam pelos dedos das mãos as pessoas que restam.
O dia começava bem cedo onde roçadoiras e foicinhos não conheciam o descanso. Mato e erva para os animais que já reclamavam nos currais.
Ancinhos em punho, cavavam as terras à mão, não sem antes as "esbeirar" e "esbordinhar" em toda a volta. Enxadas e sacholas compunham os regos até se formarem verdadeiras obras de arte a fazer inveja aos artistas de outras artes. Ali, todos direitinhos, a orgulharem-se do criador e a encher quelhadas de cômoro em cômoro. Socalcos e socalcos de terras que dava gosto ver por todas aquelas encostas acima. Desde a sementeira do renovo até ao seu recolher.
Também havia fazendas mais longe, ao pé das nascentes que os mouros descobriram alguns séculos antes e onde construíram algares de xisto, que era preciso mais de uma hora ou duas a andar bem, para lá chegar. Tudo era amanhado, tudo verdejava de vida. Hoje só as silvas e os matagais a tomarem conta de tudo. Restam alguns currais ou ruínas dos mesmos, a lembrar que ali já houve gente. Muitos deles, totalmente engolidos pela natureza que voltou a reclamar aquilo que por direito já antes lhe pertencia.

Foi ali que cresci, entre pinhais e olivais, ladeiras e fragas. Aprendi e senti na pele a dureza do trabalho da terra, sempre com a esperança de que um dia haveria de ser melhor. E foi. Um pouco. Mas não me esqueço de me lembrar sempre do lugar onde estão as melhores memórias que alguém pode guardar. Aquelas da idade quando tenra, recheadas de inocência e ainda livres de outros males que no decorrer da vida vão pesando e transformando o semblante de cada qual.
Volto lá sempre com a mesma excitação de quem volta ao sítio onde foi feliz. Guardo em cada esquina qualquer coisa que me leva a viajar no tempo e volto a encontrar-me comigo nesse outro tempo onde estão todos os outros e todas aquelas vivências em suspenso.

Cleo



Longe vão os tempos em que as aldeias fervilhavam de vida. As casas estavam cheias de gente que trabalhava nos campos, alegre, pois não conheciam outro modo de vida e os seus desejos de ambição resumiam-se às colheitas fartas que assim afastavam o espectro da fome. Mas havia fome, muita fome! Estou a falar de um tempo antigo, do qual ouvia histórias de sardinhas divididas por três, de côdeas de broa untadas com banha a servir de manteiga, de castanhas piladas cozidas quando as batatas já se haviam acabado e de refeições em que a malga era só uma e se colocava no meio da mesa (quando havia mesa e no caso de não haver, de roda do bordo da fogueira, ao borralho), onde a família comia em silêncio depois de dar graças ao divino por mais aquela refeição... o silêncio da refeição não se devia ao não terem que dizer, mas sim ao tempo que perderiam se ocupassem a boca com palavras em vez de mastigar o quinhão que lhes cabia. As batatas eram cozidas com a pele por via de não desperdiçar nada. A broa, muitas das vezes, mesmo dura, era o único conduto que havia.
As crianças pequenas (canalha) eram deixadas na rua todo o santo dia, entregues a elas próprias, enquanto os pais e os irmãos mais velhos cuidavam do renovo e das colheitas. Certa vez, contava o meu pai, numa tarde em que a fome começava a apertar, convenceu o amigo de brincadeiras, a escalar a parede do velho casebre onde ele sabia, estar pendurado na trave, o cesto das sardinhas trazidas na véspera, do mercado de Côja. Haveriam de durar quinze dias, não fossem eles lá pesca-las e tratar de as assar nas brasas da fogueira...
Uma valente tareia, foi tudo o que restou do episódio, para além da barriga cheia, é claro, e de uma história para contar aos filhos e aos netos, se bem que estes últimos tenham tido dificuldades em acreditar, visto que nada lhes falta e não conhecem as consequências da palavra miséria, ou, se calhar, nem a própria da palavra.


Cleo

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019


Ás vezes, vêm-me à lembrança pedaços de coisas que, vá-se lá saber porque motivo, me escaparam ao túmulo do esquecimento. Restos como as aparas que cobriam o chão da oficina do meu pai, depois de este ter estado a plainar tábuas para uma qualquer cabeceira de cama, gavetas de uma cómoda que lhe tivessem encomendado, portas de guarda-vestidos ou até mesmo um tampo de mesa elástica durante a tarde toda, visto que da parte da manhã a serra eléctrica não parou por quase tempo nenhum. E quando a serra a roncar endiabrada durante horas, a plaina seguia-se-lhe quase sempre. Primeiro a eléctrica e depois, para as minúcias da perfeição que lhe obrigava a arte, a manual a dar os retoques de precisão. Para cá e para lá, até a lisura se lhe apalpar nas pontas dos dedos da mão que de vez em quando lhe ia passando a verificar se já chegava de plaina ou não.
Ou como aqueles retalhitos de tecido que se amontoavam de igual forma no soalho da salita da costureira e que eu costumava ver de cada vez que lá ia tomar a prova de algum vestido novo. Não encolhas a barriga - dizia-me ela - porque se não o vestido fica-te apertado na cintura e depois não cai bem. Alfinetes a segurarem dobras e eu a contar de me picar neles quando me roçavam a pele nos movimentos das provas. Mas não me lembro de me ter picado alguma vez, de tantas vezes que foram, à razão de um vestido novo sempre que alguma festa ou casamento o exigia. Eu vinha-me embora e os retalhitos lá ficavam enrolados em linhas a atapetarem o chão à espera que alguma vassoura os empurrasse dali para fora. Haveria de ser a Ti Alice, quando já não tivesse tanto aperto de trabalho, mas por hora, quase nem tempo tinha para se coçar, visto que as festas à porta e as moças a carecerem de vestidos novos para levarem à missa e à procissão!
Quanto às aparas de madeira expulsas pela lâmina da plaina do meu pai, não tinha outro remédio se não o de ser eu a ter de as varrer para a montureira de cachiço e serradura que de Inverno servia para enganar a salamandra, apesar do fumo... mas que se Verão, lá carregava, contrariada, de pazada em pazada para o carro de mão (e o atrelado que se lhe seguiu também não era melhor) que pesava mais do que eu na hora de lhe pegar, rumo ao vazadouro da "barroca das ametades", um bom bocado ainda, para lá da "eira-cabeça". Isto num tempo em que ninguém se preocupava com poluições e qualquer traste de que era preciso desenvencilhar-se, ali tinha o seu fim como destino. E por ali ficava anos, até alguém lhe despejar um cascalho em cima...

De vez em quando


De vez em quando, coisas despropositadas a povoarem-me a memória. Restos de colecção de tempos de outrora a intrometerem-se e a misturarem-se com as coisas de agora. Não roupas nem móveis. Episódios longínquos e inconformados, porque atirados ao vão do esquecimento. Por exemplo, uma cesta de verga à cabeça de uma mulher, tapada com um pano de xadrez branco e encarnado a surgir lá ao longe no caminho em que fetos altos a engolirem-lhe o corpo. Apenas a cesta apoiada na rodilha de trapos e à medida que se aproximava, uma nuvem invisível com cheiro a guisado a poluir o aroma dos pinheiros. Seria perto do meio - dia, porque ao meio-dia horas de almoço para quem ao romper da aurora se tinha já feito ao caminho. Isto, porque o lugar onde as heranças das terras de cultivo, perto das nascentes da serra numa fartura de águas porque as sementeiras e o renovo a carecerem de amiúdes regas, mas, está visto, que distantes das casas da aldeia. Portanto, meio dia de trabalho no corpo e sonoros roncos a protestarem do vazio do estômago. De maneira que, chegada a cesta, um outro ânimo a iluminar o rosto onde o suor em bica e que um lenço puxado do bolso se apressava em limpar. Toalha estendida no chão de uma assentada de sombra e coisas que se tiravam da cesta a encherem-na de farturas variadas para além do guisado de bacalhau que já se havia antes anunciado. E num instante, todos sentados de roda do farnel e entre uma garfada e um pedaço de broa molhado no molho cor de laranja por causa do colorau, uma estória ou uma chalaça a puxar o riso fácil de quem, para ser feliz, não precisava de muito mais que a dureza da vida herdada de geração em geração desde tempos ancestrais. Não conheciam nem ambicionavam outra visto que aquela já lhes ocupava a quase totalidade da existência. Aliás, a história do "Corecho" que a minha avó me contava vezes sem conta, era um bom exemplo disso mesmo - nem tempo para arranjar uma esposa o pobre do homem tinha - pois que da sementeira até à recolha do renovo, era uma trabalheira que ninguém fazia ideia! Ele era o sacho, a assenta e a rega... os molhos de mato para os currais onde o estrume... a azeitona... as batatas... as videiras... os feijões e o milho...

Cleo

Ontem voei no tempo

Ontem voei no tempo com as asas emprestadas da emoção, quando me abeirei daquele cofre antigo e o abri com a mesma sensação indescritível de uma criança a quem se dá um brinquedo pela primeira vez...
Uma relíquia do passado que mais parecia um filme mudo onde os personagens se movimentavam com naturalidade, representando o seu próprio papel, sem qualquer encenação ou pose.
Cenas imortalizadas pelo olho mágico de uma câmara, objecto caro a que só alguns podiam chegar. E o meu padrinho podia! Por isso andava sempre de câmara em punho, filmando tudo o que lhe parecia digno de registo. Os filhos e os amigos, os passeios em família, a faina da aldeia em dias de acontecimentos importantes, como a malha do milho ou a matança do porco ou até o dia da festa anual em honra da santa padroeira da terra. A alegria das pessoas... os sorrisos... as gargalhadas... as traquinices dos miúdos... coisas tão simples mas que nem ele sabia o quanto um dia lhe haveriam de ser tão queridas, pelo seu valor de estima incalculável.
Embora tivesse consciência de que também eu era sugada para dentro dela junto com os outros miúdos com quem brincava naquela eira, onde a debulhadeira ruidosa não parava de cuspir, ora centeio, ora trigo de um dos lados e palha do outro. A minha mãe e todas as outras mães e avós não tinham descanso correndo de um lado para o outro, acudindo aqui e ali como podiam, que a máquina infernal assim o exigia, numa azáfama sem igual. Foi assim mesmo, que entraram pelo tal olho mágico daquela câmara de filmar adentro, sem se aperceberem. Na altura, nem sequer imaginava que algum dia viesse a ver o que ela guardava naquele momento...
Reconheci-os a todos de imediato, até aqueles que já morreram entretanto... e voltei a ser aquela pequena irrequieta, de vestido aos quadrados e chapéu de pano branco na cabeça, que brincava com os rapazes e gostava de fazer tudo o que eles também faziam. Saltava do muro e corria de novo em direcção ao mesmo pronta a repetir a proeza, sempre um nadinha mais alto.
Era um pedacinho pequenino de uma partícula do passado, suspensa por um fio a uma memória quase apagada, onde só uma leve lembrança ainda permanecia, por ser tão frágil quanto a tenra idade daquele fragmento de vida, que o tempo distanciou de mim.
E do nada, quatro décadas depois e sem o esperar, é-me oferecido este tesouro onde me revisitei à distancia de um simples clic...
Um tesouro que vale uma fortuna na escala do sentimento e que irei guardar com ternura para todo o sempre!


Cleo  (29 - 08 - 2009)

É no silêncio das pedras


É no silêncio das pedras que se ouvem as histórias que o pensamento traz à memória. Coisas já tão antigas...
Coisinhas simples e pequenas, mas de uma grandeza tamanha no seu significado; se este for, claro, pertença de quem lhe confira a importância devida. Se assim não for, o silêncio das pedras nada lhes dirá e tudo continuará sereno à passagem do tempo, como se este nunca tivesse tido um passado cheio e rico, fervilhante de vida. Como se nada nunca houvesse existido e as casas sejam apenas isso: casas velhas, sem interesse mas que vão resistindo, permanecendo ali, a marcar o seu próprio tempo fora de tempo...


Cleo

Queres ir aos pássaros?


Queres ir aos pássaros? - perguntava-me o meu amigo Carlos, todo contente, de fisga em punho. E eu, que pouco maior era do que os pássaros, respondia-lhe sempre que não (nem sei porque insistia!) - Olha que esta é nova... - retorquiu ele daquela vez, elevando o objecto à altura dos meus olhos míopes, para que me certificasse como devia de ser, daquilo que me dizia. De facto, aquele Y feito de um galho de oliveira, tinha cara de ter sido descascado de fresco; mais o bocado de câmara de ar com aquele reforço encarnado ao meio, davam-me ares de serem novinhos em folha e eram bem capazes de acertar nalguma asa de melro menos atento que por ali andasse à cata de lagartas nas couves. Deixa lá os passarinhos em paz - disse-lhe eu, numa tentativa vã de o fazer mudar de ideias. De maneira que, lá seguiu saltando o muro do quintal do "policia", todo contente de fisga na mão e assobio na boca, a entoar uma moda qualquer que agora me não recordo qual. Na volta, trazia os olhos no chão, as mãos enterradas nos bolsos e a fisga dependurada no de trás. Do assobio, nem um pio...
Está visto que o jantar não foi de melro nem de pardal. Foi frango guisado que é bem bom. Soube-o no dia seguinte, por acaso, quando a minha mãe se encontrou com a sua no lavadouro e falaram daquilo que tinham feito para a ceia do dia anterior. Conversas de mulheres feitas de ocasião, quando a ocasião se proporciona. O que foi o caso!


Cleo

O caminho era longo


O caminho era longo. Quase sempre a subir a começar logo pelas escadas do quintal, onde, por entre as canas de milho que me riscavam a pele desnuda, lá me esgueirava em direcção à pequena pereira ao cabo, junto ao tanque onde me empoleirava por um momento a ver saltar as rãs no bordo.
Começava ali o calvário da ladeira, por entre os carvalhos e os pinheiros que o meu pai andava há anos a ver se comprava ao dono, por causa da sombra que tolhia o renovo naquela ponta do quintal. Mas o homem era nhurro e não vendia!
Desde o covão até à lomba, lá se fazia a muito custo em virtude das vergastadas do íngreme na tenrura das pernas. A seguir à assentada da lomba, povoada por grossos pinheiros de resina a tombar nos púcaros de barro castanho, descia-se ali uns passitos e o caminho seguia a direito por mais um bocado para logo retomar na impiedosa subida, por entre tropeços de raízes e escorregos da caruma.
Mesmo que fosse sozinha, nunca o ía de facto. Melros, pintassilgos e cucos eram companhia assídua. Cantavam bem que se fartavam, os malandros, escondidos nos ramos altos dos pinheiros.
A miséria, toda ela de xisto vestida, era o rosto do nome que tinha...
Não sei se por ironia, se por desígnio da sorte, foi na miséria que a morte fez uma espera ao meu avô e o aliviou do molho de mato que trazia às costas. Encontrou-o a minha mãe, certa manhã já alta, a caminho da desprezos, de onde ele já vinha.
Lá, onde vivem as mais remotas das minhas lembranças, havia uma vida que não consigo aqui escrever em duas ou três linhas, até porque a madrugada já vai alta... Portanto, se não se importam, terá de ficar para uma próxima.


Cleo


Na velha cozinha, um fogão sombrio


Na velha cozinha, um fogão sombrio engolia de sofreguidão faminta, toda a lenha seca que lhe ofereciam. Nas bocas flamejantes, panelas a fumegar e um aroma a feijão cozido e toucinho a encher a casa toda. A um canto, uma velha sentada num banquito baixo de madeira, a descascar ou debulhar qualquer coisa que não me recordo, mas devia ser para meter dentro de uma das panelas. O gato, visto que todos os gatos são arreganhados no inverno, enroscado no calor mesmo em frente do fogão, a estorvar de tropeços nos pés das pessoas.
Aos domingos, uma selha de zinco no mesmo sítio onde o gato a estorvar agora, num improviso da casa de banho que não havia e, onde água a ferver e outra tanta de fria, uma mão a entrar e a sair da mesma em arriscadas manobras de temperos até a achar boa. De maneira que, sabonete lux a fazer arder os olhos e orelhas a precisarem esfregadas porque a pergunta :"já esfregaste atrás das orelhas?"  a impor-se. E lá em baixo, na Benfeita, o sino da igreja matriz a tocar Avés-Marias a espaços de tempo cada vez mais curtos, a lembrar a pressa da missa e a urgência do caminho, todo ele a descer, dificílimo... Porque sapatos de Domingo de sola lisa a escorregarem na caruma e isso a atormentar a ideia de se poder vir a sujar a melhor roupa!

Cleo

Por vezes, temos urgência de qualquer coisa


Por vezes, temos urgência de qualquer coisa que nem sabemos bem o quê...! Algo sentimental que nos leva a viajar para dentro de nós mesmos, procurando em cada rua, em cada esquina das memórias, nos resquícios da existência queimada pelo tempo. Evocando lugares e pessoas que nos acordam sentimentos adormecidos e nos permitem reviver instantes impossíveis de descrever. Porque só nós os vemos como vemos e como os queremos ver. Os outros não os enxergam e mesmo que enxergassem não quereriam saber. É uma coisa muito particular. Intima. Nossa!
E torna-mo-nos tão felizes ao tropeçar em pequenos nadas que nos surgem de repente, sem o esperarmos. Momentos cheios de ternura que ficaram gravados, e que, nos é permitido reviver de novo, enchendo-nos a alma de uma indizível felicidade. E pode ser só um gesto, uma expressão, uma lembrança de uma qualquer frase dita num determinado contexto e sítio específico. Um sorriso ou a lembrança de um mero afago de mão, num momento frágil (lembro-me do conforto do sentir, das mãos da minha mãe a apertarem-me os pés gelados até os aquecer). Ou um gesto carinhoso de dar uma folha de couve a comer a uma ovelha ou cabrita e ficar ali a vê-la a deliciar-se a roê-la. Ou o prazer que me dava o ver do esgravatar das galinhas, esfuziantes de contentamento, quando as soltava da capoeira por um pedacito de tempo, ao entardecer das tardes de verão.
Pode ser tanta coisa simples a emergir da escuridão do nosso subconsciente, no meio desta complexidade toda de sermos singulares, simples e mortais humanos.

Cleo

Das Luadas, lembro-me das duas tabernas




Das Luadas, lembro-me das duas tabernas de um tempo remoto. A da "Poça", do Sr. Adelino e a do Sr. Cruz ao fundo do povo onde ía com o meu pai aos domingos buscar mercearias e bacalhau. O açúcar amarelo em bolas empedernidas, o arroz, a massa e o café de cevada retirados das "tulhas" a garnel com um púcado afunilado com uma pega. Tudo meticulosamente pesado na balança de pratos e metido em cartuchos de papel pardo que o merceeiro dobrava nas pontas. Do cheiro a vinho que ensebava o balcão de madeira e aquecia por dentro os que o bebiam ao copo em rodadas intermináveis. Mas também dos sugos e dos rebuçados de tostão que me alegravam os olhos e me adoçavam a boca. Da tia Albertina que eu visitava de vez em quando e das suas gargalhadas quase infantis, indiferentes à miséria que a rodeava. Do lume da fogueira que a aquecia e do cheiro do caldo das couves aferventadas. Num dia de festa chamou-nos a todos e fez arroz de fressura e tapioca que comemos nos pratos de barro pintados com flores e "gatos" nas costas a segurarem as rachaduras. Garfos de ferro com cabos de osso e copos de vidro grosso desermanados. Mais tarde, quando já podia ir sozinha fazer um recado, levava um papel na mão e o Sr. Eduardo largava por um pouco as colheres de pau e aviava-me do que lá estava escrito. O pior eram os dois cães nervosos que me esperavam e escoltavam em tormenta alguns metros, ladrando-me às pernas e fazendo-me acelerar o coração apavorado, à chegada e à saída da povoação. Fora isso, eram mansos... Quase sempre, à porta, o Zé Pereira de mãos nos bolsos e o Carlitos que por ali cresceu. Mais adiante, na janela, o pai da Paula a olhar o horizonte que não se mexia, dia após dia de meses e anos infinitos. Por ali envelheceu, prisioneiro da mesma janela e esquecido de si mesmo, enquanto observava entretido, a vida que lhe fugiu. Já pouco ou nada resta do quanto que me lembro. Pudera... primeiro nem árvores nem nada. Depois, as árvores eram tão pequenas ainda amparadas a estacas e hoje já tão frondosas...!

 Cleo

Ser simples



Ser simples, é ser dono de uma riqueza maior! Ver o brilho nos olhos daquele homem enquanto me explicava os porquês da razão da sua felicidade, era a prova inequívoca da sua verdade absoluta. A terra, cavada de fresco, onde o castanho liso estendido ao sol a prometer viços e flores de todas as cores na volta da primavera. As árvores ainda nuas mas carregadas de certezas de folhas e frutas. Na distracção, há galinhas irrequietas a apoderarem-se do talhão dos alhos ainda tenros, a esgravatar e a debicar sem dó... - xô xô xôooooo daí pr'a fora - enxotando-as numa pressa. Ali ao lado, as cabras e os cabrititos ansiosos de brincadeiras e correrias infindáveis pelo verde do pasto que os espera daí a nada. O mais novo, nascido há apenas três dias, por ali fica ainda no quente do curral por causa da moleza dos cascos. E o luk, aos pulos, não consegue disfarçar a impaciência da demora enquanto ladra de felicidade pela liberdade que a corrente impede. Ainda é preciso tratar da fome muda dos coelhos a contrastar com a barulheira dos frangos esganados. Na volta, cinco ovos ainda mornos a encher-lhe uma das mãos e um sorriso largo a rasgar-lhe o rosto agradecido pela singeleza da vida que o escolheu. E lá vão eles indiferentes ao frio, cão e dono atrás das cabras que se misturam com a paisagem, a fazer as delícias da manhã ensolarada que o vento de norte teima em não deixar aquecer.

Cleo

Costumava pensar para os meus botões



Costumava pensar para os meus botões - um dia ainda hei-de escrever um livro com a minha história - tendo, contudo, a perfeita noção de que nunca ninguém se iria interessar por ela. O que poderia despertar interesse numa história de alguém a quem o trabalho já fustigava sem dó, o corpo franzino de uma criança que teve a infeliz sorte de ter nascido num berço pobre? Decerto que a ninguém! Mas, ainda assim, crescia-me no peito uma vontade enorme de o contar ao mundo. Queria que o mundo soubesse do meu fado e acreditava que se condoeria perante aquilo, que, na minha inocência, já se me afigurava ser uma injustiça. Contar-lhe-ia dos cansaços de dias infindáveis onde quase não havia tempo para descansos, sob pena de se confundirem com a preguiça. E esta, escorraçava-se como a um cão vadio. De campos de cultivo empoleirados em socalcos impensáveis, por onde carreiros enladeirados se assemelhavam a trilhos de formigas capazes de carregos maiores do que o seu próprio peso. Escadinhas de lajes cravadas em muros de xisto por onde subiam e desciam, sempre a medo, os meus desequilibrios míopes. A carga de trabalhos onde o milho me metia todos os anos. As regas da água do poço ao final do dia, quando já nenhuma voz de ninguém por perto, visto que o lusco-fusco, sorrateiro, a roubar a luz ao sol... Lá na longínqua "desprezos" da minha infância. As urzes e as carquejas a reclamarem a minha presença matinal, de roçadoira em punho e uma corda ao ombro, com gancho de madeira numa das extremidades que parecia envernizado pelo uso que já tinha. Na outra ponta, um nó bem apertado, para que o molho se não desfizesse quando o ugasse e o erguesse até aos ombros, carregando-o por mais de meia hora ou uma hora inteira e até mais, se o fosse roçar mais longe, visto naquele tempo não haver mato ao pé da aldeia e ser preciso correr "seca e meca" até o encontrar no baldio, lá para as bandas da "Cumeada" ou da "Lomba". De maneira que, lá o carregava, a custo, até ao curral das ovelhas, que me agradeceriam mais tarde em ruminações de serenidade. E era assim todos os dias, menos ao Domingo por causa de ser dia santo. E aos dias santos nada de certos trabalhos mais pesados...! Das azeitonas agarradas aos ramos de frondosas oliveiras centenárias, algumas à beira de verdadeiros precipícios, por onde me adentrava e lhes deitava as mãos roxas do frio e do ar da geada, empoleirada numa escada de doze banços, respigando um a um até não haver mais nenhum ramo enegrecido por bolinhas minúsculas. Das vindimas em corrimões incontáveis que ladeavam cada uma das parcelas de cultivo espalhadas por todos aqueles socalcos de encostas inacreditáveis, onde cabazes e cestas de verga se amontoavam em carreira à espera que os levassem até ao alçapão onde, por baixo, a boca aberta de uma esmagadeira empoleirada numa dorna. Das praganas do centeio dos sequeiros, que me picavam as costas e me faziam correr o suor em bica até à eira. Do ancinho que me provocava calos nas mãos mimosas. Da cabeça que me doía sob o derreio das cestas bem cheias de terra que pesava como chumbo, aquando do esbeiramento das terras inclinadas, numa faina imparável, desde o fundo até ao cimo onde as penedas já quase à mostra... E tantas, tantas outras coisas a precisar de serem contadas ao mundo. Coisas que ainda hoje continuam bem vivas na minha lembrança mas que não sei do modo de as contar, temendo não lhes dar a dignidade merecida sem vos aborrecer. Nem sei, tampouco, se o mundo se interessaria de as saber!...

 Cleo

desejo que esta carta te vá encontrar de saúde

" Minha querida irmã, desejo que esta carta te vá encontrar de saúde, bem como à nossa irmã Olímpia, que eu por cá vou andando, na forma do costume..." - Era assim que começavam as cartas que me ditava aos domingos, sentada ao meu lado, com os cotovelos apoiados na mesa enquanto pensava na frase seguinte. As notícias, quase sempre as mesmas, giravam em volta de uma dorzita aqui e ali, do tempo de sol ou de chuva, das encomendas que o Ti Américo Peras levava ou trazia e das misérias ou farturas que a terra dava conforme a seca ou a geada fora de tempo. A prima Augusta, era uma daquelas velhinhas simpáticas e sempre a sorrir, que me povoavam os dias de então. A sua casa, na mesma rua da da minha avó e por onde eu passava amiúde, toda ela de pedra e que me parecia enorme por dentro derivado à ausência de forro que deixava as telhas e os buracos entre as mesmas, a descoberto. Logo a seguir à porta, era preciso subir uma dezena de degraus altos, de madeira, ao cimo dos quais uma divisão ampla, onde uma mesa com um banco corrido e duas ou três cadeiras carunchadas; uma janelita de onde se avistavam os quintais verdejantes e parte das casas da aldeia. A um canto, uma bacia de esmalte, um balde por baixo, um espelhito pendurado, uma toalha igualmente pendurada e um jarro ao lado, era tudo o que precisava para se lavar a cara e as mãos antes de comer. Logo ao pé, uma sacada para a rua por onde se assomava bastantes vezes, porque gente a toda a hora a conversar ou a passar com molhos de qualquer coisa às costas ou mulheres de cestas à cabeça que se encontravam e ali ficavam que tempos a conversar sobre isto e aquilo, sobre tudo e nada... A canalha ao final do dia, no regresso da escola, sempre com diabruras e aos pinotes a brincar e a encher, também ela, aquela rua de vida! Do lado de baixo, um jardinzito onde lírios roxos no meio de ervas altas, a lembrarem tempos mais viçosos ainda, mas dos quais não tenho memória. No fim da carta escrita, uma guloseima na palma da minha mão e um sorriso agradecido a enternecerem o instante, que, só a esta distância e pensando agora, não o sabia de tanta importância como a que realmente tinha. Naquele tempo, ser analfabeto era uma coisa que se encarava com uma certa normalidade. Não fora a precisão de se mandar uma carta a alguém ou de ler a resposta... quase que nem se precisava de saber ler ou escrever...!

 Cleo

Já naquele tempo



Já naquele tempo, a maior parte das quelhadas estava ao abandono. Eram enormes silveiras, por entre as quais, um caminhozito difícil de se passar, visto que as silvas sempre a agarrarem-se às mangas e às pernas, com ganas de nos devorar. Mas não havia outro caminho e, portanto, era por lá que se tinha de passar para chegar às outras quelhadas da "despresos", lá muito mais acima. E também da poça grande, a cimeira de todas e com a água da qual se regavam os feijões, as batatas, a erva e o milho que por lá ainda se cultivava.. Ficava lá mesmo ao cabo, num sombrio de arvoredos que se espelhavam na água sempre que a poça estava cheia. Eu costumava empoleirar-me no bordo desta, que me parecia enorme visto que eu uma criança pequena e, não descansava enquanto não a percorresse em toda a volta em emocionantes e inconscientes desafios perigosos. Havia rãs de vários tamanhos a saltitar daqui para ali, desaparecendo na água, porque umas bolhazitas a flutuar de vez em quando... O Manel era um homem que costumava andar por ali todos os dias. Um criado de servir de uma família das Luadas. Para além das fainas agrícolas, ocupava-se do gado, que às vezes deitava à tardinha, para que pudessem encher a barriga e não ser preciso ir ceifar o molho da erva para lhes dar à ceia. Não dizia grande coisa por causa de ser mudo, mas os mais que por lá andavam, já o entendiam entre gestos guinchos e urros. A minha irmã, que era mais nova do que eu alguns anos, tinha medo dele... Coitado, uma pobre alma que não fazia mal a ninguém! Certa ocasião, ía ela a subir por entre as quelhadas e, quase a chegar ao pé do curral da Ti Albertina, nisto, aparece-lhe o Manel de repente, por detrás do curral a "falar" como ele sabia. A desgraçada da miúda assustou-se e desatou a correr por ali abaixo, saltando os muros onde corrimões de videiras e tudo, só parando ao cimo do abismo, onde, lá em baixo, o poço do qual se costumava regar o chão grande. E este, cheio! A minha mãe, quando se lembrava desta história e a contava de novo, costumava dizer sempre: " foi Deus que lhe deitou a mão".

 Cleo