quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Com o propósito de irem assistir


Com o propósito de irem assistir a uma festa que se realizava nos Cepos e tendo eles sido convidados para o evento, por familiares que lá residiam, não se apurando no entanto, o motivo pelo qual a dita festa ser noutra estação que não a do verão, que é, como se sabe, o mais acertado. De maneira que, sendo que as duas terras ainda bastante distantes uma da outra e não havendo na época, estradas que as ligassem, era preciso abalar ainda de noite, de lampião aceso na mão, por caminhos de cabras contornando os montes e descendo aos vales. Tal como o faziam os rapazes novos, quando, de terra em terra de noite por causa dos bailaricos e das raparigas nas festas... Acontece que, por talvez ser inverno ou princípio da primavera, tinha caído um nevão e o caminho sem se distinguir por baixo da neve. Ainda para mais, sendo de noite e as luzes que levavam, sem alumiarem nada por serem tão reles. Entre dúvidas de "ser mais por aqui ou menos por além", escorregadelas e desesperos de pés gelados e dormentes, havia ainda quem se tivesse arrependido de não ter ficado mas era em casa, ao pé do borralho, que lá é que se estava bem de certeza. Quem quer festa, sua-lhe a testa! Mas isso era se fosse de verão... 

Cleo

Cresci entre casas de pedra


Cresci entre casas de pedra com varandas de madeira e tapetes de quintãs, para os despejos das águas sujas, onde se limpavam os pés antes de subir as escaleiras altas e entrar em casa. E estas a desembocarem num corredorzito de frontais e sobrado de tábuas corridas, já bastante carunchadas, a denunciarem a passagem do tempo. Uma vassourazita de giestas a varrer o cachiço do braçado dos gravetos para o lume, porque dali a nada seriam horas de fazer o caldo. Este era um tempo em que se contavam muitas estórias, visto nestas casas, quem lá morava, não me lembro de lhes ouvir um lamento que fosse pela falta de um rádio a pilhas... Não sabiam como era nem se interessavam por tal(já outras mais novas, não perdiam um folhetim do "simplesmente Maria", nem que para isso tivessem de levar o aparelho e o pendurar num ramo de oliveira, enquanto se cavava a terra). Normalmente eram viúvas vestidas de negro, com tamancas nos pés, xaile pelas costas e lenço na cabeça atado num laço ao queixo. Contavam-me estórias do tempo dos lobos na serra e dos cordeiros que lhes levavam nos dentes, sem que pudessem fazer fosse o que fosse, por terem pouca idade e serem quase da mesma altura das ovelhas que as mandavam guardar.

 Cleo

O banco de madeira a postos


O banco de madeira a postos no meio da rua. Os homens a chegar para ajudarem a segurar o animal. O bicho, assustado, a ser arrancado à escuridão do curral. E ouvem-se gritos lancinantes de aflição, sem ninguém a comover-se, porque é mesmo assim! Eu a sair porta fora e a correr o mais que podia, até ao mais longe que conhecia, que era ali logo a seguir aos palheiros da Eira Cabeça, a aninhar-me num canto da eira de cimento de malhar o centeio e a meter os dedos nos ouvidos para não ter de o ouvir... Voltava daí a um pedaço, quando, ao tirar os dedos dos ouvidos e já nenhum grito a ecoar ao longe. E ao voltar encontrava uma azáfama de carquejas em chamas a passarem no corpo do animal prostrado no chão e um intenso cheiro a chamuscado. Uma mangueira ligada e água a empurrar o sujo ao mesmo tempo que várias mãos a esfregarem aquela pele rosada, afinal, tão parecida com a nossa, agora, nua de pêlos. E não era só a pele, porque dali a pouco, quando lhe abrissem a barriga e o deixassem todo à mostra por dentro, alguém a dizer: " se queres ver o teu corpo, mata o teu porco". De modo que, dalii para o chambaril preso no barrote, num esforço de homens habilitados e o animal pendurado num instante, de cabeça para baixo a escorrer sangue para uma gamela pequena. Um corte na barriga e as tripas cá para fora, entornadas numa gamela maior. Dali a nada, as mulheres de roda delas a lavarem-nas na bica de água corrente, no poço do quintal. No ar, um cheiro a fezes indescritível... A minha mãe a cozer o sangue que alguém aparou na hora da matança. E os homens a matarem o outro bicho com os quadrados de sangue cozido e talhadas de broa a acompanhar. Tanta coisa que me vem à ideia ao rever estas imagens onde também eu estou, neste lugar tão meu, de uma primeira vida já lá tão longínqua, de um ano em que até a neve apareceu e ajudou a manchar de vermelho vivo, o chão da rua. 

Cleo

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

No tempo em que me eu criei


No tempo em que me eu criei, metia-se uma côdea de broa na algibeira e abalava-se, de barriga vazia, com uma corda e uma roçadoira para o mato..." - Esta era uma frase que me lembro de ouvir algumas vezes, especialmente quando havia necessidade de fazer ver a diferença entre esses tempos de miséria e os que se viviam na actualidade da época. Portanto, éramos uns sortudos em ter nascido naquele tempo em que as dificuldades já eram menores, embora o não fossem assim tanto, para todos. De maneira que, na nossa casa, antes da desjejua, ainda era preciso ir abrir as galinhas, fechadas na escuridão do poleiro durante a noite e já mortinhas por ver a luz do dia, desde o CÓCÓRÓCÓCÓ madrugador do rei da capoeira. Só após esse pequeno mandado, uma ou duas fatias de pão de segunda em cima da torradeira de levar ao lume, e ficar ali a tomar conta para prevenir o cheiro a queimado e depois se barrar de "planta". Para empurrar as torradas, uma canecazita de café de cevada que se entornava da cafeteira de alumínio, com um pinguito de leite a mudar-lhe o negro da cor. A alternativa seria uma tigela de pão migado com o mesmo café a ferver espalhado por cima para amolecer e um pinguito de leite ainda mais pequeno que o da nossa caneca, a tingir tudo aquilo de castanho (poderia até ser mais, mas só se fosse do das ovelhas ou das cabras e esse com um sabor e consistência demasiado fortes para a nossa esquisitice). Mas, mais uma vez, não era para todos... Havia casas, em que nem torradas de "planta", nem leite dos pacotes de cartão, ou sequer daquele em pó que, de vez em quando, também aparecia na nossa casa. De modo que, comiam uma malga cheia das sopas de pão migado, que, por vezes, até eram de broa seca e rija, só com o café negro e a colherzita de açúcar por cima, a adoçar e a ver se assim arranharva menos na garganta. Vi muita vez, quando ia chamar os colegas de jornada a caminho da escola, enquanto esperava que deglutissem a malga que abraçavam com as mãos sobre o regaço, sentados num mocho junto da lareira acesa. Nem sei se eles saberiam do sabor das torradas... Perante tudo isto, éramos, portanto, umas felizardas no que tocava ao luxo na hora da desjejua!

 Cleo

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A minha mãe, grávida da minha irmã


A minha mãe, grávida da minha irmã já quase no fim do tempo, com um sarrão de milho às costas e eu logo atrás de si como se fosse a sua sombra, na minha ainda tão tenra e míope existência, dado que, o meu mundo com manchas disformes e sem nitidez. Mas ninguém ainda a ter-se dado conta, porque os óculos grossos no meu nariz só lá para os cinco anos e tal de idade e a fazerem bastante diferença desde logo visto que os meus pés lá muito ao longe, poisados num chão esquisito e cheio de pormenores de pedrinhas e outras coisas que eu nunca tinha visto àquela distância... A ribeira que fazia trabalhar o moinho, a mais de uma hora e meia de caminho pelo meio dos matos e do pinhal, lá para os lados dos castanheiros do Carcavão. Por fim, já cansadas e de pernas a doer, lá chegávamos ao nosso destino. Aquilo era uma espécie de um casinhoto de pedra, meio engolido já pelas silvas, onde uma mó a fazer barulho numa azáfama incansável de andar à roda, a transformar os grãos que se entornavam na moega, numa chuva branca de farinha, graças ao ensurdecedor caudal da água que nos impedia de ouvir fosse o que fosse para além da dança das pedras a roçarem uma na outra. Era um dos moinhos do Carcavão, pertença de muitos mas com ordenada organização e serventia. Cada um na sua vez, portanto! Daí por um bom pedaço, quando já nenhum grão por moer, voltava-se a encher o sarrão com a farinha, varria-se tudo em volta bem varrido e era hora de nos metermos de novo ao caminho, pois que o sol já se tinha escondido naquele barroco e sem lua à vista, em breve seria noite cerrada! No dia seguinte, haveria de se cozer a broa e para a merenda, haveria quase de certeza, uma esmagada de sardinha ou de chouriça, daquelas de nos fazer crescer água na boca, visto que um petisco daqueles era sempre um renovado motivo de alegria.

Cleo

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Certa ocasião



Certa ocasião, por alturas de chegar os machos às fêmeas para que estas emprenhassem e viessem a parir uma ou duas crias, tendo em vistas já, o leite para o queijito das merendas, quando estas a proporcionarem um dos melhores momentos numa qualquer jornada de trabalho na fazenda.
De modo que, havia que tratar de arranjar um espécime de boa qualidade!... O que nem sempre se adivinhava ser tarefa fácil, visto que os poucos que havia para o efeito já andarem ocupados e terem outros haréns em lista de espera. Em alternativa, telefonava-se para o "piriscas" da Benfeita a ver se ele arranjava algum antes que a lua passasse. E desses ainda havia aqueles que não se empenhariam com o êxito esperado na tarefa que lhe estava destinada, acabando por irem parar mais cedo às caçoilas no forno em dias de festa, logo que as houvessem.
Portanto, tendo um feliz contemplado à sua espera no curral de uma prima do Monte Redondo que esta lhe havia prometido por carta e tendo já assente o dia de ir buscar o animal e tudo, só lhe faltava a companhia para que não tivesse de ir sozinha por todo aquele caminho até à Deguimbra e ainda o que dali faltava até ao Monte Redondo, que, ficava lá longe, do outro lado do redondo do monte...
Dada a devida autorização do meu pai, lá vamos nós as duas a meter pés ao caminho, por aqueles atalhos acima, por meio de matos e tojos que rascanhavam as pernas, até à estrada da lomba, que, do que me lembro, nunca mais acabava... Ao fim de alguns pares de horas, lá chegámos, por fim, à terra do chibo que haveria de ser o pai dos cabritos das suas cabras, que o esperavam em anseios caprinosos de balidos animalescos...
De maneira que, acabado o lanche na casa da prima e dado que a Lídia uma mulher solteira e ainda com boa aparência, houve também tempo para um episódio manhoso, disfarçado o mais que possível por via da minha ainda que inocente presença, que envolveu a fugaz aparição de um homem calvo por detrás de uma porta encostada, mas que foi rejeitado na hora por falta de empatia, ou, se calhar até, de vocação.
Embora já um pouco tarde, o que haveria de nos levar à chegada do entardecer e posterior chegada da noite ainda pelo caminho, lá viemos com o animal preso por uma corda e cheio de teimosia, talvez por não lhe apetecer andar com estranhos, por todo aquele imenso caminho de volta à nossa terra.


Cleo

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Trago ausências de marços



Trago ausências de marços, onde andorinhas nos beirais anunciam primaveras que já foram. Trago saudades dos meus a pingarem-me dos olhos, a fazerem-me tirar o lenço do bolso para as enxugar num breve fungar. Trago lembranças antigas, escritas no vagar do tempo e que vou folheando nas horas vagas. Retratos de ontem onde também estou mas sem me ver. Tanta gente que já aqui não mora. Tanta vida, a maior parte já esquecida. É estranho. Não consigo explicar... Trago anos de solidão a agrilhoarem-me sem perdão. Trago rugas na pele que me desfiguram o rosto liso de outrora. Que me denunciam a existência espinhosa. Fixo-me na distância de uma vida, até onde o olhar pode alcançar. De que me poderá valer? De nada! Desisto, visto que se me embaciam os olhos e aos outros pouco ou nada importa. Trago noites nas bainhas dos dias, onde sombras por desvendar... talvez almas dos mortos que fui velar, a chamarem-me.

Cleo