quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
O banco de madeira a postos
O banco de madeira a postos no meio da rua. Os homens a chegar para ajudarem a segurar o animal. O bicho, assustado, a ser arrancado à escuridão do curral. E ouvem-se gritos lancinantes de aflição, sem ninguém a comover-se, porque é mesmo assim! Eu a sair porta fora e a correr o mais que podia, até ao mais longe que conhecia, que era ali logo a seguir aos palheiros da Eira Cabeça, a aninhar-me num canto da eira de cimento de malhar o centeio e a meter os dedos nos ouvidos para não ter de o ouvir... Voltava daí a um pedaço, quando, ao tirar os dedos dos ouvidos e já nenhum grito a ecoar ao longe. E ao voltar encontrava uma azáfama de carquejas em chamas a passarem no corpo do animal prostrado no chão e um intenso cheiro a chamuscado. Uma mangueira ligada e água a empurrar o sujo ao mesmo tempo que várias mãos a esfregarem aquela pele rosada, afinal, tão parecida com a nossa, agora, nua de pêlos. E não era só a pele, porque dali a pouco, quando lhe abrissem a barriga e o deixassem todo à mostra por dentro, alguém a dizer: " se queres ver o teu corpo, mata o teu porco". De modo que, dalii para o chambaril preso no barrote, num esforço de homens habilitados e o animal pendurado num instante, de cabeça para baixo a escorrer sangue para uma gamela pequena. Um corte na barriga e as tripas cá para fora, entornadas numa gamela maior. Dali a nada, as mulheres de roda delas a lavarem-nas na bica de água corrente, no poço do quintal. No ar, um cheiro a fezes indescritível... A minha mãe a cozer o sangue que alguém aparou na hora da matança. E os homens a matarem o outro bicho com os quadrados de sangue cozido e talhadas de broa a acompanhar. Tanta coisa que me vem à ideia ao rever estas imagens onde também eu estou, neste lugar tão meu, de uma primeira vida já lá tão longínqua, de um ano em que até a neve apareceu e ajudou a manchar de vermelho vivo, o chão da rua.
Cleo
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