domingo, 1 de março de 2020

Cresci na aldeia,



Cresci na aldeia, na Beira Serra. Uma terra pequena e somenos como muitos diziam, na época ainda com bastantes casas de pedra à mostra, hoje vaidosamente apelidadas de casas de xisto, o que lhes dá logo uma certa dignidade!... Estas casas eram, já se sabe, habitadas por famílias modestas e numerosas. Havia outras ainda, cheias de silêncio e vazias de gente. Noutros tempos sim, pelo que me contavam, todas elas cheias de gente ou pelo menos com uma ou outra viúva ou até solteira ou solteirona como lhes chamavam, que, já impedidas de caminhar, em alguns casos até tolhidas por causa do reumático, costumavam assomar a uma qualquer janela a dar fé de quem passava na rua. Até parece que ainda a estou a ver, na casa de pedra em frente da nossa lá estava a Ti Urbana, quase sempre de cabeça fora da janela, ora a conversar com alguém, ora a chamar pelos gatos que com ela viviam e lhe faziam companhia. E antes dela, a Ti Zefa que era a sua mãe e de que me lembro vagamente de ouvir falar. Lá mais acima, outra viúva a morar sozinha também na sua casita pobre, de pedra, naquele valeiro frio e sombrio onde não dava ponta de sol no inverno. Mas a Ti Rosária ainda boa das pernas, a andar bem e a chamar-nos ao balcão, em frente da porta da cozinha, por causa de nos querer vir fazer companhia ao serão. De vez em quando também aparecia a prima Rosa do fundo e o marido, o ti Serafim, que era para se distraírem um bocadinho. De modo que, ali ficávamos todos, isto é, todos menos a minha mãe, que, coitada, tinha tanto que fazer que só muito mais tarde se nos juntava, a fazer um bocadito de renda por causa de enxotar o sono e também para aproveitar o tempo que era pouco e os naperons e as colchas para os enxovais das filhas, ainda por fazer. Tudo isto se passava num tempo anterior ao conforto do sofá e até à lareira. Ali se estava, sentados em cadeiras e bancos baixos ou mochos, a vermos o Vitorino Nemésio na televisão, num monólogo enfadonho antes da peça de teatro a preto e branco que nos fazia rir. Em frente do calorífico de duas barras, que se tinha de desligar de vez em quando por causa dos gastos da luz. Ainda hoje lá permanecem estas duas, só que sem se lhes ouvir um murmúrio. A gritarem de silêncio! Existem lá mais igualmente caladas, cheias de fantasmas a vaguearem por entre as divisões... Mas dessas falarei noutro dia.

 Cleo

De vez em quando, fugazes imagens a aflorarem-me ao pensamento



De vez em quando, fugazes imagens a aflorarem-me ao pensamento ,onde dou comigo a brincar sozinha visto que por ali não havia mais nenhuma menina da minha idade e portanto as brincadeiras de bonecas estavam logo à partida condenadas... Já os rapazes era um punhado deles, ou com os mesmos anos ou de idades aproximadas. De maneira que, não me restavam grandes alternativas no que diz respeito às brincadeiras da canalha, ou me juntava a eles ou a algum deles que por ali aparecesse, ou me entretia comigo mesma em aventuras que por vezes chegavam a ser até perigosas, mas ninguém ali a vigiar e a impedir-me de trepar a um pequeno muro de pedra e dali para a beirinha do telhado, já meio destelhado, de uma casa em ruínas que existia mesmo defronte da casa da Ti Ricardina que vivia paredes meias com a minha avó. Foi no lugar desta mesma casa, que, mais tarde, já eu crescida e esquecida destas coisas porque outras mais importantes(?) a imporem-se na urgência dos dias, se ali erguia aos poucos, aquela que viria a ser a casa de convívio da comissão de melhoramentos do Pai das donas. Uma obra importante, tendo em conta o sonho que se acalentava há décadas e que finalmente se materializou com a vontade de quase todos... Isto ali pelo meio da década dos anos oitenta do século passado. Hoje já existem outros melhoramentos que atraem gente até de outras terras estrangeiras, fazemdo-se ali então, grandes festas de convívios onde predominam as novas gerações de gente com e sem raízes na aldeia. Contudo, desconhecendo por completo a história do lugar e a nobreza das memórias que me enriquecem a alma.
Mas isso é a mim, que sou assim, uma criatura sensível... E não tenho como me desapegar desses sentimentos que me invadem o ser!


Cleo

Chovia... uma chuva miudinha que parecia saída do crivo



Chovia... uma chuva miudinha que parecia saída do crivo de um regador antigo, daqueles de zinco baço, igual aquele outro, em que a pequena Leonor, que tinha tanto de teimosa como de traquina, se cortou no lábio de cima ao escorregar no meio de uma correria desenfreada, que terminou abruptamente com um corte profundo que lhe ficou marcado para a vida. Teria uns três ou quatro anitos e não se lembra de nada, mas a marca está lá, a comprovar a história que a mãe se apressava a contar, sempre que lhe perguntavam o que tinha acontecido ao lábio riscado de branco.
Chovia... uma chuvinha miúda que o sol tentava evaporar com os seus raios quentes, mas que mais não conseguia do que lhe dar um brilho luminoso fazendo com que um enorme arco de várias cores, se atravessasse no céu, cortando-o em duas metades, como se faz a uma laranja sumarenta.
Chovia... e a pequena Leonor, agora mais crescidinha, mas ainda com toda aquela energia e teimosia, olhava-o deslumbrada do lado de dentro da pequena janela da sua casa. De repente, uma vontade enorme de o atravessar de um lado ao outro, começou a nascer-lhe lá de dentro do seu querer.
Não aguentou mais e saiu porta fora, correndo o mais que podia até o alcançar.
Só que... e o que ela não sabia, é que o arco-íris não se pode atravessar!
Leonor voltou triste. Trazia no olhar e nas mãos vazias a vontade amarrotada, e nos passos lentos, a alma desolada.
No meio de tanta desolação, Leonor nem reparou, mas o sol havia entornado as cores do arco íris, derramando-as no chão sob a forma de pequenas flores, que eram agora um tapete multicolor onde as borboletas esvoaçavam felizes.
E já não chovia...



Cleo

Quisera o destino E esta ruina


Quisera o destino 
E esta ruina 
 Não o seria!... 

 Mas a sede dos homens 
Não tem tamanho
E o inferno Subiu à terra! 
O dragão do fogo 
Endiabrado 
A cuspir labaredas 
Que tudo lamberam
 Enquanto o diabo


 Esfregava um olho!... 
No fim 
O verde ficou cinza 
As casas que já não eram 
A encherem o olhar 
Dos que marejavam 
No vazio...

O cansaço 
A desolação 
Do tudo quanto fora 
Em nada!... 

Cleo

Em Novembro



Em Novembro, a noite chegava sempre mais cedo. As candeias de azeite penduradas nas paredes de ripas de madeira a segurarem a massa-triga, minadas pelos insaciáveis e devoradores insectos microscópicos que se haviam escapado do seu profético cárcere de milénios esquecidos, não chegavam para alumiar a solidão e fazer frente às sombras que se agigantavam soalho fora, engolindo os trastes que mobilavam o casebre. Fora construído em tempos com o suor dos velhos que o habitavam e que agora se confundiam com os espectros da morte em gestação no ventre da escuridão, com quem partilhavam mais um serão interminável, só entrecortado de tempos a tempos com uma ou outra palavra, interrompendo dessa forma, o silêncio dos pensamentos em que ambos se abandonavam numa mudez de cansaços.

Cleo