segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Chegam-me do fundo do tempo




Chegam-me do fundo do tempo as vozes dos que se encontram ao passar na rua. Uma rua estreita, de penedos lisos e escorregadios das águas que das janelas se entornam de bacias sem culpas... Mulheres carregadas com cestas à cabeça e homens de enxada ao ombro e sacos de serapilheira p'la cabeça, a protegerem-se da morrinha com que o dia acordou. A falarem de coisas ocasionais como as dores que sentem no corpo, de sucedidos novos ou antigos, ou até, de feitos ainda por fazer. São pedaços de ontem. Pequenos nadas entrecortados de silêncios macios de musgo. De vez em quando, uma ou outra gargalhada entre uma piada e um convite p'rá matança do bicho na escuridão da adega... E eu, saltitando no muro encostado ao caminho ao fundo do quintal, entretida com as pequenas descobertas da vida que brotavam entre as pedras, sem fazer grande caso das conversas dos adultos. Mas as vozes, inaudíveis, a ecoarem num murmúrio, neste retalho de escrita que se perde no tempo... 

Cleo

sábado, 14 de dezembro de 2019

Naquele tempo, uma barra de sabão azul e branco




Naquele tempo, uma barra de sabão azul e branco a par do petróleo para o candeeiro, das mercearias e do bacalhauzito que se trazia da taberna, quer fosse a do Eduardo ali na aldeia ao lado, ou a do Artur do correio na Benfeita, bem como a do Nunes à praça e ao Domingo depois da missa, era tão natural como hoje se chegar ao café do Arlindo das Luadas e se mandar vir uma bica ou uma serradura fresquinha. Coisa que naquele tempo nem havia. De maneira que, lá se cortava um pedaço grande quando já só umas lascas, boas para dar às garotas que acompanhavam as mães, se entreterem a lavar as peças miúdas. Um alguidar cheio de roupa, à cabeça ou de braçado e ala para o lavadouro por via de lavar a roupa suja... Os lugares melhores, quase sempre ocupados pelas mesmas, a darem uso às pedras esfregando-lhes e batendo de vez em quando, a roupa enterriada das fainas da terra. Falaças e gargalhadas mas também lamentos e choros e até corte e costura da vida alheia... Tudo se lavava no lavadouro da minha aldeia. Uma sabonária para a roupa branca que por ali ficava dois ou três dias a diluir o sujo, até haver oportunidade, entre os afazeres domésticos e os do campo, para ali voltar por modo de a voltar a esfregar e a que estivesse mais custosa, deitar a corar na relva do quintal ou nos muros e em casos mais graves, então lá se fazia, por fim, uma lixívia para branquear melhor. Eram precisos, portanto, vários dias para lavar a roupa de uma ou duas semanas de uma casa de família composta por meia dúzia de pessoas ou mais. Hoje, nem pessoas nas casas a sujarem roupa, nem mulheres para a lavarem, nem água no tanque... 

Cleo

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

A prima Olinda


A prima Olinda era uma daquelas pessoas de bem consigo e com a vida. Sempre com bons modos e de sorriso plantado no rosto. Morava em Lisboa, mas, de vez em quando, vinha com o Américo Pêras na sua "For Transit", por via de vir tratar das árvores de frutos, ou pela apanha da azeitona que ainda lhe rendia alguns bons litros de azeite que lhe dava para os gastos e ainda sobrava. Ou então só porque sim. Por gostar de vir até à sua casa, de se sentar no seu terraço, todo ele enfeitado com canteiros de hortenses e brincos de princesa, mas também de dezenas de vasos de sardinheiras em toda a volta. Dali avistava-se parte da aldeia, sendo que também se podia ver as casas e apreciar os quintais dos seus outros dois irmãos, Jaime(Nabiça) e Emília. Sempre que a sabia por lá, tratava logo de a ir visitar, na esperança de que, com ela, tivesse vindo também a sua sobrinha, uma miuda da minha idade e com quem tenho memórias de algumas tardes de verão a brincar e até andar de patins. De maneira que, de vez em quando, lá se partia um ou outro vaso porque os mesmos de barro e os patins a não fazerem as curvas a tempo... Tudo isto num tempo em que a São do Acácio ainda sem Acácio, solteira, uma jovem de sorriso fácil também lá sentada numa cadeira a descansar um bocadinho das suas tarefas domésticas. Tinha também uma vinha na encosta solarenga do Vale do Sandinho, mandada plantar pelo seu primeiro marido, pessoa muito respeitada na terra e que nunca cheguei a conhecer a não ser só de ouvir falar do seu nome: o sr. António do Casal - do Casal, penso que por ter sido criado no sítio do "Casal", nas imediações da aldeia das Luadas. Actualmente habitado por alguns elementos da comunidade estrangeira da zona. Mas voltando à vinha da prima Olinda, a tal da encosta soalheira e que costumava produzir bastantes cachos de uvas de várias castas das boas, o que lhe conferia um vinho de muito boa qualidade e que, na altura das vindimas, costumava mobilizar a maior parte das pessoas da aldeiabque ali acorriam com enorme satisfação, por se tratar, no fundo, de uma verdadeira festa! Eu e a Fernanda, minha vizinha de ao pé da porta, estávamos sempre lá caídas todos os anos. Cabía-nos a árdua tarefa de carregar as cestas e os pusseiros cheios de cachos por aquela encosta toda acima... Não era fácil. Mas no fim, como já disse, era uma festa. Porque um delicioso almoço à nossa espera na sala de jantar, onde, uma mesa elástica a acomodar mais de uma dezena de pessoas. E uma terrina de canja a fumegar seguida de uma enorme travessa de jardineira, não esquecendo as belas das filhóses da sobremesa e tudo isso tão bom que me parece ainda estar agora a saber...!! 

 Cleo