sexta-feira, 22 de março de 2019

A propósito de um livro de Manuel Alegre


A propósito de um livro de Manuel Alegre(o nosso político mais poeta que se conhece), editado e lançado há uns anos e ao qual deu o curioso título: "O miúdo que pregava pregos numa tábua". Ora, veio-me imediatamente à ideia, a minha remota infância, em que, numa coincidência nostálgica, me reportou no tempo ao mesmo pé de igualdade da deste miúdo do livro. Assim sendo e não pretendendo usurpar coisíssima nenhuma ao autor deste livro, a não ser o que o seu título me despertou nas lembranças e onde era eu a miúda que pregava pregos numa tábua... O meu pai era marceneiro e era por ali, dentro da sua pequena oficina, que eu ficava a maior parte dos dias enquanto a minha mãe se ocupava dos trabalhos do campo a que estava obrigada. Entretinha-me pois, a brincar com o que tinha mais à mão. E o que mais poderia ser, se não pregos, um pequeno martelo sem orelhas que eu tanto gostava, talvez por ser assim pequeno como eu... e os também pequenos quadradinhos de madeira de todas as formas e tamanhos que eu descobria no meio das aparas e da serradura que cobriam todo o chão daquela oficina. De maneira que, pregava pregos e dedos, e, no fim, ficava um tanto ou quanto desiludida com a minha obra final. É que tinha a mania de querer fazer em ponto pequeno o que via o meu pai fazer em tamanho grande!... Talvez um pouco fora do contexto, mas, ainda assim, e por se tratar de algo que reporta àquele mesmo tempo, não me posso esquecer daquele homem que, de tempos a tempos, passava à porta da oficina e assomava na soleira da porta, mendigando qualquer coisinha que lhe forrasse o estômago ou lhe agasalhasse o corpo já tão castigado pelo frio dos Invernos rigorosos daquela época. Naquele tempo viam-se alguns pedintes solitários que calcorreavam antigos caminhos de cabras que só eles conheciam e que os levava de terra em terra, mendigando uma côdea de broa aqui e ali ou uma peça de roupa ou de calçado que já não servisse ou fizesse falta a ninguém, fazendo desse modo de vida, a sua odisseia existencial. Falei neste pobre homem, porque é incontornável a lembrança daquele episódio caricato e que ainda hoje é motivo de gargalhadas sempre que alguém se lembra e se fala nele. Então dizia o homem, virando-se para o meu pai, já depois de ter morto a fome e enquanto descansava da jornada, regando o cansaço com um copito de vinho - Ó Ti Abílio, e se você me desse uma tábua e um prego para eu levar comigo e quando chegasse à minha terra a pregasse numa parede que lá há? A ver o que é que dava!...

Cleo

O ti Viola, em certa ocasião



O ti Viola, em certa ocasião, comprou uma mula nova. Coisa não muito habitual por aquelas bandas mas também nada do outro mundo; até porque, quando se ía ao outro mundo, que, para mim, era a movimentada vila de Arganil em dias de feira, também por lá se viam algumas bestas iguais aquela e de outras espécies até... Mas o Ti Viola, sempre teve animais desta monta, visto que, era comerciante de especiarias, tripas de bois, facas corticeiras, cestos de verga e outras coisas mais. De maneira que, precisava de um meio de transporte que o levasse de feira em feira. Bem, isto antes de ter comprado uma carripana e ter contratado um choufer na Benfeita, onde, aliás, também ficava a dita, numa garagem à entrada da povoação, por se acabar ali a estrada. De maneira que, a mula era quem o trazia ladeira acima, nos restantes três quilómetros que faltavam até à nossa terra, ao cimo do outeiro, onde também morava. Ora, voltando ao episódio que vos quero contar, tinha então o Ti Viola acabado de chegar montado na sua mula vindo lá da sua vida, apeando-se ali mesmo à porta da oficina do meu pai com quem se entreteve a dar dois dedos de conversa, não sem antes ter prendido (assim só por uma questão de impôr o respeito) o animal a um atrelado que ali estava encostado à parede e que nos servia para ir buscar uma lenha ou carregar as aparas e a serradura da oficina quando era preciso. Andava o bicho entretido a petiscar umas ervas que ali tinham nascido por entre as frestas das pedras(antes de ali haver alcatão, claro), quando, numa tentativa de chegar a uma mais viçosa que lhe acenava mais adiante, lá deu um puxão na corda que o segurava ao atrelado(por precaução) e eis que o dito cujo que era todo de ferro se manda para o chão, a correr que nem um desalmado atrás da mula que entretanto e com o susto, se largou a correr que nem uma perdida pela rua abaixo. Ora, a rua, para além de enladeirada ainda fazia uma curva mesmo em frente da casa da prima Alzira, cuja janela da adega ficou toda arrombada por causa do atrelado que embirrou nela. Valeu-lhe o nó que tinha afinal sido bem dado, caso contrário... da mula, nem sinal!

Cleo

quinta-feira, 21 de março de 2019

Na gaveta da cómoda



Na gaveta da cómoda que fizeste para me oferecer e que eu não quis, ainda permanecem todos os teus papéis importantes e cartas com novas de outros tempos, que, decerto, te fizeram sorrir e brilhar os olhos de emoção. Por isso as guardaste. Agora, tudo isso desimportante e amarelecido p'lo tempo que não deu tréguas. Outros já teriam queimado tudo, mas eu não. Gosto de guardar o passado! No baú de lata pintado de verde, onde zelosamente guardavas os retratos, encontrei-te pequeno ainda. Vestido à homem dentro de um fato de calça e casaco. Mãos nos bolsos e alpargatas nos pés. Pergunto-me, que sonhos terias tu naquela época? O que pensarias vir a ser na vida? Olho-te no retrato, ali parado, sem expressão e não consigo adivinhar-te os pensamentos. Não sei se chegaste a ser o que sonhaste. O retrato continua mudo e tu imóvel e calado. A terra haveria de reclamar-te algumas décadas depois. Ficaste-me no pensamento, nas lembranças e nos retratos. Ainda te vejo, se fechar os olhos, sentado no sofá em frente da lareira apagada e da televisão das notícias que te davam conta do mundo. E, já sem forças, dormitas na solidão dos dias infinitos, entorpecido p'lo frio que se te entranhou nos ossos e da doença que te definhou os músculos. Uma mantita sobre os joelhos e tu entretido com o tempo todo e a tua dor...

Cleo

Das tantas histórias


Das tantas histórias que me contava nas longas tardes que passavamos as duas, enquanto me penteava e fazia tranças, lembro-me particularmente desta que se conta em poucas linhas: Chamava-se "Corecho" e vivia sozinho porque nunca teve tempo de arranjar uma mulher com quem casar. Quando lhe faziam conversa disso, respondia com a sua verdade: _ Como é que me hei-de arranjar com isso se não tenho tempo? É que primeiro vem a sementeira, depois o sacho, a assenta e a rega. Não tarda vem a colheita e bem não, já é outra vez tempo de esbeirar, cavar, semear... Pobre homem atarefado!

Cleo

Lá vai a procissão


Lá vai a procissão 
Na minha rua a passar 
Um instante de emoção 
Que se esfumou no ar 

Ficou o retrato 
Para o relembrar 
Mas ninguém já vivo 
Para o recordar 

O lugar não se mudou 
Mas o tempo não parou 
E tudo se acabou 

 Tenho saudades deste tempo 
Ainda que não fosse meu... 
O lugar aquietou-se 
E... Emudeceu!

 Cleo

O sol a derreter-se num manto vermelho



O sol a derreter-se num manto vermelho que cobria o horizonte. Via-se bem ali da lomba, pois que a clareira no meio do pinhal, permitia alcançar mais além do que no resto do caminho desde a Despresos, visto que o carreiro, todo ele entre os grossos pinheiros de sangria e estes a não deixar. Às cavalitas do meu pai, bem segura pelas mãos dele, sentia-me a voar, sem, no entanto, possuir quaisquer asas. Logo atrás de nós, a minha mãe com a minha irmã numa cesta à cabeça segura por uma mão na asa visto que a outra ocupada a equilibrar uma sachola ao ombro. Depois, mais duas ou três pessoas que vieram ajudar na sementeira, faziam a algazarra de vozes e risos própria de quem, apesar de tudo, se sente feliz por ter chegado ao fim de mais um dia com aquele espírito de missão cumprida e pela qual valia o cansaço que trazia no corpo. Mais à frente, lá iam as ovelhas, mansas, mas as cabritas aos saltos por cima dos muros, mordiscando uma carqueja ou moita, aqui e ali, conforme as fossem encontrando. Essas eram as primeiras a chegar e esperavam junto ao curral, engolidas pelo lusco-fusco da noite que lá vinha. Ao longe, ainda o clarão vermelho do sol que entrementes desaparecera, a anunciar mais um dia de calor que haveria de nascer dali a algumas horas.

Cleo

domingo, 17 de março de 2019

Meti-me numa cápsula do tempo


Meti-me numa cápsula do tempo e viajei sem destino. Achei-me no mesmo lugar de sempre, de onde, na verdade, nunca cheguei a partir... Aquele lugar é refém das minhas memórias e é para lá que fujo em segredo tantas e tantas vezes quando me quero esconder deste tempo de agora. E vou pelos carreiros que conheço como as minhas próprias mãos. Tanto na ida como na vinda, tenho a companhia sempre pronta e desinteressada dos pardais e dos cucos esquivos, que me seguem lá no alto dos ramos dos pinheiros que me levam pela sombra. A velha casa de pedra serve-me de abrigo aquando da trovoada inesperada. Existe lá uma prateleira com livros já meio desfeitos e aos quais faltam muitas folhas, mas, nas que lhes restam, há sempre qualquer coisa nova, que ainda não tinha visto nem lido... O velho abrunheiro, ao fundo da quelhada grande, oferece-me a sombra apetecível onde me deito descansada sob a relva e durmo uma sesta merecida. Há joaninhas que se misturam com morangos selvagens, salpicando de vermelho o ervascal abandonado por onde me entretenho a brincar enquanto a minha mãe trata da rega dos feijoeiros ali ao lado. Pela noitinha, de volta a casa, eu e os cabritos saltitamos contentes pelos muros adiante, ou não fossemos todos crianças! É dia da matança do porco. Levanto-me mais cedo que o costume e corro para o mais longe que posso. Sento-me numa pedra, meto os dedos nos ouvidos (não quero ouvir os guinchos do pobre coitado) e espero uma boa meia hora... depois regresso. Um serão quente. O canto dos grilos a cortar o silêncio. Um petromax na mão, alumia-nos o caminho. Eu às cavalitas do meu pai. Um caminho estreito. Uma casa com um outro petromax pendurado no tecto. Um monte de espigas à espera de serem debulhadas... meia dúzia de pessoas, cada uma com o seu mangual a bater uma a uma e o milho vai saltando e formando um imenso lago de grãos... Há conversas, há risos e gargalhadas, há histórias de outros tempos ainda mais remotos. É hora de voltar. Amanhã o milho irá ao sol... De tamancos com sola de pau, sobe ligeira a escada encostada aos ramos da oliveira grande do pomar. A mãe, aflita, chama-a, mas ela, teimosa, finge que não ouve e sobe cada vez mais depressa. Sobe até ao fim; até ao último banço da escada de madeira... A fogueira crepitava e erguia labaredas altas, tal como ela gostava. Sentadas no bordo, de mãos e pés esticados em direcção ao lume, riamos despreocupadas. Talvez o nosso riso se devesse apenas ao conforto de ver aquele lume a arder ali mesmo à nossa frente, a aquecer-nos por fora e por dentro. Nunca mais comi uma sopa de couves aferventada tão saborosa como aquela... Ao lado, uma malga de vinho e um naco de broa com sardinha, acabadinha de sair das brasas da fogueira. Noutro dia, no telhado da mesma casa, sentadas nas lajes aquecidas pelo sol de Março, pedia-me que lhe enfiasse as agulhas com linha preta porque os seus olhos cor de mar rasavam-se de água e não a deixavam vislumbrar o buraco minúsculo da agulha. Estava sempre a coser qualquer coisa enquanto me ía contando histórias de lobos e de homens.

Cleo

Nunca saia de casa para lugar algum


Nunca saia de casa para lugar algum, sem levar o tempo consigo, guardado no bolso. Aquele objecto redondo ao qual se dava corda para que pudesse continuar a marcar os minutos e as horas, preso a uma corrente que ele prendia a uma presilha do cinto das calças para que se não perdesse, era como se fosse uma parte de si mesmo. Algo que lhe era intrínseco, quase como se fizesse parte da sua essência... Hoje está para lá esquecido numa gaveta, ao pé de uma lupa minúscula que ele também usava para destrinçar certas letras ainda mais minúsculas. Facturas antigas, um par de óculos de ver ao perto e blocos de apontamentos com desenhos de cómodas e guarda-fatos(entre outras coisas) com "xis" de altura e "tanto" de largura, que, certamente, construiu a seu tempo e entregou a quem lhe encomendara.. Mas a máquina de contar o tempo, essa, só deixou de o contar no dia em que o dono não apareceu para lhe voltar a dar mais corda. Que se saiba, nunca mais ninguém se preocupou com isso. De modo que, tenho para mim, que o tempo parou para um e para o outro nesse mesmo dia.

Cleo

sábado, 16 de março de 2019

E depois de tudo... o silêncio.


E depois de tudo... o silêncio. A gritar as dores do corpo entorpecido de cansaços. A vida contada em meia dúzia de palavras. Mais um pouco de silêncio diluido num trago de licor e a alma a doer-lhe nos olhos rasos de água. Uma lágrima a despencar da pálpebra avermelhada e a vir morrer-lhe no lenço que tira do bolso do avental. Saudades dos seus que estão longe... O coração a palpitar descoordenado como diz no papel do electrocardiograma que foi buscar para eu ler. Nada de grave, qualquer coisa num ventrículo a preocupar-lhe o pensamento. Muda-se de assunto que tristezas não pagam dívidas, já dizia o ditado, e diz-se uma graçola e dá-se uma gargalhada e leva-se o cálice aos lábios mais uma vez para adoçar a boca e aconchegar o espírito. Fala-se de tudo e de nada mas com sabor a tanto,tanto... que ninguém é capaz de fazer ideia!

Cleo

E de repente, encontrei quarenta anos


E de repente, encontrei quarenta anos a separar-me desta manhã de nevoeiro em que o meu pai resolveu meter o sobretudo pelos ombros, a minha mãe se encolhia de frio, a minha madrinha se empoleirou ao pé de mim em cima do banco e a minha irmã (de bibe tal como eu) negociava uma brincadeira qualquer com o vizinho do lado sob o olhar distraído da sua mãe. Conversavam sobre qualquer coisa banal, certamente. Alguma dor nas articulações ou sobre o atraso da sementeira do milho por causa do tempo. Ao lado, a enorme casa de pedra dos gatos da tia Urbana que eu só conhecia da janela alta. E o limoeiro, tão pequeno ainda, a fazer companhia às oliveiras do quintal da Lídia. O muro de pedras soltas já meio desfeito, a denunciar o abandono de todos os tempos e o poste de madeira do telefone público que vivia na nossa casa e em cujo topo costumavam poisar as corujas para nos virem cantar agoiros à noite. O poste ainda por lá continua nos dias de hoje, para deleite dos mochos ao contrário do telefone que há muito se foi. O muro agora é outro, mais moderno, de linhas rectas e aprumadas. O banco, ponto de encontro de gente quando a gente aparecia sem ou com hora marcada, guardador de segredos e outras estórias, tantas... Coisa pouca. Nada que mereça grande perda de tempo para a maioria das pessoas e também o seria para mim, não fosse eu agarrada às coisas que me dizem tanto!... Portanto, a meu ver, é um pedaço de lembrança, suspenso por um fio de tempo, a medir distâncias e a tornar insuportável o peso da leveza das coisas insustentáveis...

Cleo

sexta-feira, 15 de março de 2019

Por vezes temos urgência de qualquer coisa


Por vezes temos urgência de qualquer coisa que nem sabemos bem o quê...! Algo sentimental que nos leva a viajar para dentro de nós mesmos, procurando em cada rua, em cada esquina das memórias, nos resquícios da existência queimada pelo tempo. Evocando lugares e pessoas que nos acordam sentimentos adormecidos e nos permitem reviver instantes impossíveis de descrever. Porque só nós os vemos como vemos e como os queremos ver. Os outros não os enxergam e mesmo que enxergassem não quereriam saber. É uma coisa muito particular. Intimíssima. Nossa! E tornamo-nos tão felizes ao tropeçar em pequenos nadas que nos surgem de repente, sem o esperarmos. Momentos cheios de ternura que ficaram gravados, e que, nos é permitido reviver de novo, enchendo-nos a alma de uma indizível felicidade. E pode ser só um gesto, uma expressão, uma lembrança de uma qualquer frase dita num determinado sítio específico. Um sorriso ou a lembrança de um aperto de mão... Pode ser tanta coisa simples a emergir da escuridão do nosso subconsciênte, no meio desta complexidade toda de sermos singulares, simples e mortais humanos.

Cleo

quinta-feira, 14 de março de 2019

De vez em quando




De vez em quando, pequenos retalhos de uma vida passada, a aflorarem-me ao pensamento. E volto a ter cinco ou seis anos e uma consulta com o Dr. Rasteiro, o oftalmologista de Coimbra, que, no seu frio consultório do hospital de Arganil, me receitou pela primeira vez uns óculos de oito diopetrias, que me faziam ver as coisas nítidas ao meu olhar míope. Daí para diante, nunca mais foi preciso ir com a cara ao chão para ver qualquer coisa minúscula a apontarem com o dedo - ali, ali... não vês?!... está mesmo à tua frente! - e aquilo impossível de ver dali. Uma vez por ano, a garantir o crescente nas diopetrias e o lugar na carteira da frente da escola primária (e das outras), mesmo em frente da professora. E eu, que dava tudo para estar no da carteira lá do fundo. Mas esses guardados para os "burros"!...
Antes de tudo isto, ainda era preciso lá chegar. Ao consultório do doutor. De modo que, e para poupar o dinheiro da carreira, que ainda para mais era preciso ir apanhar à Benfeita, daquela vez resolveu-se ir a pé pela estrada da serra. Levantar da cama ainda de noite nem foi o pior. O pior, foi mesmo a lonjura do caminho! Pelo carreiro do Covão acima, como quem ía para a Desprezos, até à Lomba. Depois, bem... depois, já era bom caminho. A estrada de terra batida a levar-nos na poeira por aqueles pinhais adiante. E eu, de meias brancas e sandálias, tudo numa lástima de pó...! Passando o Alqueve, depois Folques, e tudo já em alcatrão. O meu pai, de vez em quando a parar e a tirar o relógio de bolso para consultar as horas. Talvez uns 20 Km, nada que não se pudesse fazer, até porque, no regresso, havia a promessa da carreira que abalava de lá às seis da tarde, portanto, ainda bastante tempo de sobra para o meu pai se aviar antes, de algumas ferragens que lhe faziam falta na oficina. A loja das ferragens era ali mesmo por detrás do café "Argus" de agora, não me lembro se naquele tempo também, visto o meu pai nunca me lá ter levado a tomar nenhum galão nem a comer um bolo de arroz. Gostava mais da leitaria junto ao "Ratinho", onde me intrigavam aquelas colheres de rabo comprido que mergulhavam no copo alto, onde o café com leite a ferver, por via de mexer o açúcar dos pacotinhos... Mas isso era só quando era preciso ir a Coimbra à consulta e na rua um frio de rachar porque era sempre inverno. De modo que, e enquanto a camioneta que nos haveria de levar ao "expresso", vinda de S. Romão e que se apanhava na Moita da Serra não chegava, nós ali a tomar uma coisa quente para nos aquecer e a fazer tempo.
Do que me lembro bem, era da rua empedrada de penedos reboludos e da loja mesmo ao meio, onde nasciam duas ruas. De maneira que, uma porrada de tempo ali, entre dobradiças, pregos e parafusos, antes de irmos comer uma bucha de pão e queijo que a minha mãe nos tinha mandado para compôr o estômago, à taberna escura que havia ali para as bandas da feira e onde estavam os do costume, a beberem os copos do costume. Um sumol de ananás para mim, um copito de vinho para o meu pai para ajudar a empurrar e a trouxa da bucha na mesa sebenta, que ainda tivemos de repartir pelos do costume, por causa da boa educação que fez o meu pai perguntar: - São servidos? E o queijito e a broa cozida de véspera, a luzir nos olhos dos demais. E tudo isto agora reduzido a tempo. Tempo e memórias!.

Cleo

quarta-feira, 13 de março de 2019

E eis que me volto ali,




E eis que me volto ali, ao lugar de sempre, num tempo esquecido, que me escapa pelos becos e vielas escuras da memória... Rostos embaciados a segurarem um instante irrepetível. Eu de antes no mesmo sítio de agora, mas diferente, porque antes tudo aquilo também diferente e cheio de tudo o que já não existe agora. Dos que ali estavam já ninguém a aparecer, a subir ou a descer a rua. Já ninguém a sentar-se nas pedras do muro nem a conversar. Nenhuma canalha a brincar na neve inesperada de um Janeiro qualquer... Ninguém a chegar para ajudar à matança do porco, porque nenhum porco no curral. As casas estão caladas e já ninguém a abrir a porta para entrar ou sair. As chaminés sem fumo e nenhuma mulher a chegar com uma cesta ou um molho de qualquer coisa à cabeça. A rua emudeceu e, portanto, tudo diferente agora.

Cleo

terça-feira, 12 de março de 2019

Algures, num qualquer dia


Algures, num qualquer dia assinalado numa folha de calendário antigo, perdido num canto escuro de uma casa ao abandono, mas onde perduram as memórias de um tempo que já foi cheio! Na madrugada ainda escura, um homem caminha com uma pequena pela mão, por causa de uma consulta dos olhos no hospital da vila de Arganil.
Foram por um atalho, visto que a camioneta, essa, não passava da Benfeita e partia às sete horas da manhã, em ponto. Até lá, ainda um bom pedaço a palmilhar o carreiro. Além disso, o bilhete também custava dinheiro, daquele que pouco havia e para não dar em perna quebrada por causa de um qualquer contratempo, o melhor seria deitar os pés ao caminho. De maneira que, de casa até à "lomba", pelo carreiro acima, era um salto, como se costumava dizer. Não o era, porque o mesmo a subir a pique, de modo que, impossível de saltar... O pior era depois, a interminável estrada de terra batida que atravessava a serra toda até ao cimo da Esculca e ainda faltava passar pelo Alqueve e pelo Mosteiro. Depois, Folques ali logo ao virar da curva, mesmo quase, quase, lá ao pé...
Deveria ser Verão, porque a poeira a entrar-lhe pelo picotado dos sapatos de fivela ao lado, a tingir-lhe de castanho as meias brancas de sair. Mas isso era o menos. O pior eram os pés a queixarem-se dos tornozelos e os tornozelos a fingirem que não era nada com eles. Mas tenho cá p'ra mim, que a culpa seria mesmo dos sapatos, porque os pés um bocadinho desconfortáveis apesar dos sapatos maiores do que os pés mas com um tufozito de papel macio na biqueira, por causa de durarem mais tempo, visto os pés sempre a crescerem e os sapatos na mesma...
Já havia amanhecido entrementes, mas o caminho ainda a meio e as horas da consulta a chegarem-se. Era preciso apressar o passo, visto que o especialista que vinha de Coimbra, não costuma esperar por ninguém. "Pai, ainda falta muito?" - Pergunta a pequena já fatigada. "Não. Não vês que já andamos a maior parte? Daqui até lá é um salto!" - Responde-lhe o pai, tentando apaziguar-lhe o desânimo. Caminhavam já no asfalto, mas, ainda assim, muito longe do destino que os ali levava.

Cleo

segunda-feira, 11 de março de 2019

Tenho fome dos sorrisos de sol



Tenho fome dos sorrisos de sol a iluminarem-me a brancura da pele. E da preguiça do vento, a agitar a folhagem ao lusco-fusco de um fim de Junho quente qualquer, embalando os afazeres esvoaçantes dos pássaros antes do recolher. Das falaças e gargalhadas das gentes, que, de ferramentas ao ombro, e cestas à cabeça com coisas lá dentro e ainda um cestito pequeno pendurado pelo aro no braço, enchiam os caminhos por entre pinhais e veredas a cheirarem a erva fresca. Da embriagante lânguidez do entardecer, espraiando-se sob os campos de trigo doirado, quase maduro. Dos dias cálidos a prometerem sinfonias de grilos de cigarras, de ralos e de rãs, noites adentro... Tenho saudades do bailado ondulante das magníficas e belas borboletas da Primavera da minha infância, beijando todas as flores. Tenho ainda saudades, do verde fluorscente dos luzicus por entre as pedras e ervas na parede do meu quintal. Dos lírios que enfeitavam o jardim abandonado, em frente à casa alta da prima Augusta, na mesma rua onde também morava a minha avó e, em cujo telhado baixinho e de lajes quentes, me sentava junto dela e me demorava a ouvir as suas histórias de encantar, que me contava por entre costuras de dedal e agulhas difíceis de enfiar. Lembro-me das dálias rubras sem canteiro, nascidas da terra, junto ao corrimão das videiras ao cimo do quintal. Das tangerinas que salpicavam o chão em volta da tangerineira. Metade dentro e a outra metade caidas na estrada... E das outras que colhíamos com a escada da azeitona, para dentro dum cesto. Dos abrunhos de frança a pingarem de mel visto que abelhas gulosas a poisarem-lhes em cima. Tenho saudades da bilha de barro onde se guardava a água fresca que nos matava a sede quando longe das nascentes. Mas também dos refrescos de groselha que se faziam para as mulheres à merenda, quando estas apareciam para nos ajudar a arrancar as batatas e um calor que não se podia...! E saudades ainda, dos enfeites para a festa que se fizeram naquele ano longínquo - que retornaria após anos de ausência - à sombra da hora da sesta, junto à casa da prima Lucinda - a grande entusiasta da sua feitura - e que depois se guardavam na sua loja até ao dia de enfeitar as ruas. Centenas de metros de bandeirinhas coladas em fio de chouriças e ainda alguns candeeiros mais elaborados que haveriam de pender do tecto do largo da capela, onde a festa e o bailarico até de madrugada. E, claro, de todas as outras festas que se lhe seguiram, porque os primeiros foguetes morteiros a anunciarem a alvorada, para que as outras terras vizinhas soubessem!... E, portanto, a música da aparelhagem a tocar logo de manhã e o cheirinho da carne fresca a inundar as ruas onde casas com muitas pessoas a falarem, a entrarem e a saírem... Da missa e da procissão com a banda a tocar nas suas cornetas e as pandeiretas a marcarem o passo. Acabada a procissão ainda se leiloavam as ofertas e só depois o almoço farto, onde, em cada casa mais um ou dois lugares à mesa para os da filarmónica, visto ainda terem de tocar umas modas da parte da tarde e a fraqueza a tomar conta do corpo derivado ao avanço da hora... À noite, a animação das falaças e dos risos, do largo cheio de gente à espera do conjunto que haveria de animar o arraial. Tenho saudades disto tudo e não serei só eu!...

Cleo

quinta-feira, 7 de março de 2019

Tinha na curva dos anos


Tinha na curva dos anos uma espondilite incorporada que a obrigava a caminhar de nariz rasteiro ao chão, impedindo-a assim de contemplar o céu e tudo o resto que existia acima do horizonte rastejante ao qual os seus olhos estavam confinados. Limitando-se unicamente às raízes e às pedras do caminho por onde caminhava sempre sem ver ninguém. Ainda que, a dois passos de si, alguém consigo se cruzasse. Se lhe falassem, respondia prontamente com o cumprimento do costume: um "bom dia" ou uma "boa tarde" logo seguido da pergunta que se impunha: "quem está aí?" Se fosse alguém conhecido, ainda fazia um esforço doloroso e erguia-se o mais que podia numa tentativa vã de encontrar o rosto de quem do alto lhe falava, se não fosse, poupava-se ao esforço desnecessário e seguia adiante. A capucha pela cabeça, aparava-lhe a chuva e o vento que no Inverno a não impediam dos cuidados que tinha. Do sol de Verão, sentia-lhe o calor que lhe queimava a pele dos braços cansados até onde chegavam as mangas arregaçadas e, a luminosidade espelhada no alcatrão da estrada, que, por vezes, também tomava. E lá seguia a caminho da vida que lhe fugia...

Cleo

De volta ao meu mundo secreto



De volta ao meu mundo secreto onde as memórias se misturam com as imagens de agora, vou rabiscando desenhos de palavras com o que me vai aflorando ao pensamento. E escrevo como se a minha vida dependesse disso. Se fosse poeta, diria que escrevo com a alma em chamas. Porque o faço inspirada em modelos vivos que fazem ou fizeram, em alguma época, parte da minha existência. De maneira que,tenho esta mania de me voltar para o passado e tentar arrancar lá do fundo os pedaços que se me colaram às paredes do meu poço das lembranças. Coisas sem importância pensarão alguns, mas cheias de significado para mim. Ainda mais por saber que mais ninguém se importará com elas e se não forem resgatadas a tempo, acabarão por se desfazer no esquecimento, como tantas outras das quais já não resta nem um simples vislumbre. Apagaram-se como uma lâmpada que se funde! Hoje rabisquei um quadro a carvão, onde um rapaz descalço corre pela rua abaixo, feliz, atrás de um pneu de bicicleta segurando-o com uma gancheta de arame grosso. O rapaz não sabe que é a estrela do meu desenho, nem nunca o virá a saber visto que não viveu o tempo suficiente para que lhe pudesse contar. Mas lá vai ele, feliz por ser apenas uma criança presa num corpo de um quase adulto onde nunca se reconheceu. E continua a correr, livre, atrás do pneu de gancheta em punho. Sempre que lá vou, encontro-o por ali a assobiar... Não é que o veja realmente, mas sinto-o e quase que lhe consigo tocar no espírito, apenas com a força do meu pensamento.

Cleo

Num tempo em que tanto se fala de pobreza e caridade





Num tempo em que tanto se fala de pobreza e caridade, desigualdade e injustiça social, não posso deixar de me lembrar de uma história que o meu pai costumava contar algumas vezes, sempre que o tema vinha à baila e por ali havia gente com fartura, que não se importava nada de ouvir as mesmas histórias com o mesmo entusiasmo de sempre e que, estava mais do que visto, que acabaria quase sempre, no final, com umas valentes gargalhadas de todos os ali presentes. Como aquela do homem que certa vez por ali passou e, após ter granjeado alguma coisa de comer e beber, no fim se vira para o meu pai com um ar muito sério e, por ter visto a sua arte e engenho no fazer, bem como, a perfeição do seu trabalho em algumas peças de mobiliário, lhe pede uma tábua e um prego para levar consigo por via de, quando chegasse à sua terra, a pregar lá numa porta a ver o que é que aquilo dava... Mas esta não era uma história dessas. Esta era uma história mais séria e que não motivava gargalhadas mas antes silêncio e reflexão. Passo então a relatar a dita história: Parece que já o sol ía alto quando o pobre homem se assomou á soleira da porta da oficina que estava sempre aberta e, num gesto humilde, perguntou se podia entrar. Depois de dar a salvação com um tímido "Bom dia", passou de imediato ao que ali o trazia... - Ó senhor, não tem por aí alguma coisinha que não lhe faça falta e que me possa dar? - O seu olhar era tão penoso e suplicante, que não haveria ninguém que perante tal, não se comovesse. Vestido de trapos remendados e os pés descalços, ali estava um pobre desgraçado que, para sobreviver naquele tempo em que não havia reformas mínimas nem dinheiro de espécie alguma a tilintar no fundo do bolso, calcorreava caminhos de terra em terra, a pedir esmola aqui e ali, apelando às almas generosas que dele se enchiam de pena, enquanto afirmava que qualquer coisita lhe servia. Não havia esquisitices. De maneira que, o meu pai disse-lhe que esperasse ali que ele já vinha. E subiu as escadas que davam para o andar de cima, onde foi procurar por algo na cozinha, que pudesse amenizar a fome que a criatura denunciava nos olhos e na magreza do corpo. Além de um prato de sopa de feijão que a minha mãe tinha feito ao almoço e de um pedaço de pão com sardinha frita, trouxe também um par de botas que já não usava por estas lhe terem feito uns malditos calos que o obrigaram a deixá-las de lado, ainda que fossem praticamente novas. - Tome lá isto e coma á vontade - disse-lhe entregando-lhe a sopa e o pão, guardando as botas para depois do homem matar a fome. Após a refeição, estendeu-lhe as botas dizendo: "veja lá se estas botas lhe servem". Os olhos da criatura até marejaram de tanta alegria ao verem as botas. Nunca tal imaginou, quando ali chegou e apenas pediu algo que lhe aconchegasse o estômago vazio! Pegou nas botas e começou a tentar calça-las. Ora puxava de um lado ora do outro e o raio das botas não havia maneira de entrarem. Mas que raio de azar! - Parece que não querem entrar. não lhe servem. - Servem servem meu senhor, eu é que tenho os pés inchados!... De maneira que, agradeceu muito tudo o que o meu pai lhe havia dado e lá foi com o estômago composto, botas ao ombro e os pés descalços... É claro que as botas não lhe serviam, nem quando os pés desinchassem... Mas eram suas aquelas botas e ai de quem lhe as quisesse tirar!

Cleo



Trazia nas mãos enrugadas que às vezes escondia nos bolsos do avental negro, a aspereza dos calos de uma vida inteira. Não era o caso, em virtude da lenha para a fogueira onde a panela de ferro já a esperava. Pela cabeça, a capucha de lã escura em cuja aba se resguardava do vento cortante de janeiros antigos. Nos pés, as tamancas de pau íam mastigando a cada passo o gêlo que emergira do chão à força. Nos olhos de mar que nunca viu, saltavam-lhe alegrias difíceis de compreender visto que do mundo só conhecia aquela terra que a viu nascer e toda a dureza que sempre acatou sem se questionar, sem um reclamo que se fizesse ouvir. Fiquei ali a vê-la desaparecer no meio da neblina, como um fantasma que tal como apareceu, se diluiu sem deixar rasto. Pouco depois anoiteceu e o silêncio engoliu a aldeia por completo. Só o cheiro a lume vindo dos telhados e um clarão ou outro por dentro dos vidros de janelas baças.

Cleo

Naquele tempo, ainda não havia carrinhas



Naquele tempo, ainda não havia carrinhas que nos fossem buscar e trazer a casa, de modo que, ía-se a pé pelos carreiros abaixo até à Benfeita e depois subia-se a ladeira toda até ao cimo de tudo a caminho da escola que estava sentada no alto do outeiro, virada de frente para o Pai das Donas. Passava-se à porta dos irmãos sapateiros, sempre na sua faina a coser cabedal e a colar palmilhas, a martelar e a remendar meias-solas de botas que chegavam a ir lá parar por mais de duas ou três vezes antes de ficarem sem préstimo algum. O cheiro a cabedal e a cola espalhava-se pela rua e só na curva da casa dos irmãos"malucos" é que deixava de se sentir. Chamavam-lhe malucos por não serem muito sociáveis e passarem a vida em casa, onde por vezes se assomavam a uma das janelas altas a ver quem passava na calçada. Em tempos viviam com a mãe, mas desde que ela morrera que passaram a viver sozinhos. Pouco mais se sabia daquelas estranhas criaturas. Um pouco mais acima, lá estava o papagaio da dona Ilda a dizer-nos "Olá!" ou então outras coisas menos dignas que a rapaziada lhe costumava ensinar... Lá mais ao cimo da rua íngreme, outro "fantasma" debruçado na antiga janela de correr ao meio e para cima, com muitos quadrados de vidrinhos, atento ao movimento da canalha que por ali passava àquela hora. Antunes, penso que era assim que se chamava o velhinho de forte bigodaça já fora de moda. A Leninha ainda nova mas que parecia muito mais velha derivado à grossura dos seus óculos míopes, mais duas ou três vizinhas conversavam entre esquinas e o barbeiro preparava-se para fazer a sua volta costumeira, de pasta na mão e boina espanhola enterrada na cabeça até às orelhas. Talvez fosse até às Luadas ou aos Pardieiros, se calhar à Dreia, onde tinha a clientela de guedelhas grandes à sua espera. De quando em vez, lá vinha o João de rojos(antes do carrinho de rolamentos feito de uma caixa de sardinha, que os amigos lhe arranjaram). Ele bem falava, falava... mas eram quase imperceptíveis as suas palavras. Nada que o impedisse de ir a todas as festas das aldeias vizinhas e por lá ficar até a festa acabar e alguma boa alma se compadecer e lhe improvisar um canto qualquer para pernoitar. Por vezes passavam-se dias até aparecer alguma camioneta que lhe desse uma boleia de volta até à Benfeita. Mas penso que era feliz assim(sempre a rir). E ao cimo de tudo, finalmente a escola onde a miudagem se juntava toda, cada qual das suas terras e muitos da Benfeita. Menos os dos Pardieiros, que esses tinham a sua própria escola. Lembro-me do arroz de atum e da sopa que a Ti Nazaré nos fazia para o almoço e do leite em pó que demorava a "descaroçar" naquela panela tão grande. Isto já a partir da segunda classe, porque na primeira, ainda era preciso levar a marmita das batatas fritas com omeleta ou o que demais as nossas mães lá tivessem para nos mandar. Lembro-me também daquela menina que era filha de um resineiro e que, por serem tão pobres, a marmita dela era um púcaro da resina, daqueles pretos de plástico...

Cleo

Coisas que nos fazem viajar no tempo


Coisas que nos fazem viajar no tempo e voltar aos lugares onde pertencemos e onde vivem as nossas memórias de outras vidas... As tamancas nos pés da minha avó, que, em passitos curtos e ligeiros, caminhavam sobre os penedos lisos da calçada, antes das escadas de cimento que vieram depois. A panela de ferro com tantas estórias guardadas, contadas à mesma lareira onde fervia o caldo das couves. O saquito de pano, onde se guardavam os feijões, o grão de bico, a broa... Os tamancos com atacadores de guita - o mesmo material que me lembro de ver a servir de cinto nas calças do meu avô - era o calçado dos homens mais afortunados, porque os outros andariam descalços... O garrafão de palha onde se levava o vinho para alegrar as sementeiras e empurrar a bucha. O candeeiro que alumiava a noite quando o dia se acabava. Os serões a debulhar o milho ou os feijões, alegrados pelas cantigas ou as estórias de bruxas e lobisomens, que havia sempre na boca de alguém com jeito para as contar e nos encantar. Tudo isso se foi, mas ficaram os objectos, calados, gritando tudo isto em silêncios sepulcrais...!

Cleo

Tudo servia para enfeitar o ramo




Tudo servia para enfeitar o ramo de loureiro que a missa deste dia pedia, visto ser o tão aguardado Domingo de Ramos. De maneira que, à falta de outras coisas, hipoteticamente mais vistosas, que se supunha existirem noutros lados mas que ali não tínhamos, deitava-se a mão ao que havia. E o que havia eram camélias, rubras ou cor-de-rosa, que se prendiam aos galhos do ramo com um pedacito de fio das chouriças, que se encondia no meio das folhas. Umas serpentinas coloridas que sobravam do carnaval, enroladas em toda a volta e umas tangerinas(que tínhamos com fartura), penduradas aqui e ali, a abanarem para cá e para lá, conforme os solavancos que se davam no caminho, pinhal abaixo, entre tropeços de raízes e escorregadelas de solas lisas na caruma ou nas folhas apodrecidas dos castanheiros. Chegados ao adro da igreja da Benfeita, os olhos a brilharem num misto de alegria e orgulho pelo ramo que se exibia. Cada um de nós e todos os outros que já lá estavam, mais os que ainda chegavam de todas as outras terras da freguesia. Uma exaltação de alegria que se não conseguia explicar, cada um aprumando o melhor que podia, o seu ramo!... E havia ainda, dois ou três, que, movidos pela extravagância de dar ainda mais nas vistas, carregavam um loureiro inteiro até à porta da igreja, não se atrevendo no entanto, a passar da soleira da porta da igreja...

Cleo

Naquele tempo não havia Natal




Naquele tempo não havia Natal na nossa casa. Sabíamos que era Natal, porque o calendário pendurado na parede do fundo da escada o anunciava com o 25 a vermelho. Depois era só esperar pelas vésperas, altura em que a nossa excitação crescia com a expectativa da chegada dos meus padrinhos com os filhos - os nossos companheiros das brincadeiras das férias grandes - cujos avós os esperavam fervendo em ânsias de saudades. Moravam ali mesmo, na casa ao lado da nossa. De maneira que, sempre que roncava um carro pela rua acima, precipitáva-mo-nos de imediato para a janela a confirmar a tão desejada vinda. Depois... bem, depois era o reboliço das vozes, dos abraços e dos beijinhos. - Então compadre, como é que isso vai? - E a comadre, vai melhorzinha? - Para nós, era como se fossem da nossa família. Pelo menos era assim que o sentíamos, como se fossem nossos também! O ritual de descarregar o carro onde malas, caixotes e sacos se erguiam numa revoada de alegria. No dia seguinte, logo de manhãzinha, o caminho do pinhal era o mais certo dos caminhos, por causa de escolher um pinheiro jeitoso onde fitas douradas e vermelhas, bolas de prata e de ouro se encavalitavam nos ramos vestidos de luzinhas a piscar e neve que parecia farinha polvilhando de branco o verde da caruma. E ali ficava, majestosamente a acoitar um presépio onde figurinhas de barro se enterravam no musgo fresco e húmido da chuva. De modo que, o nosso Natal se resumia a todo aquele ininterrupto piscar colorido que observávamos cá de baixo (por vezes empoleiradas em cima do muro para ficar mais perto) através dos vidros embaciados da marquise e que nos encantava até à alma, mesmo sabendo que era só dos outros... Depois, voltávamos para casa onde umas filhós acabadas de fazer, uma caneca de chá de limão a ferver e uma fatia de bolo-rei a cada um, a prometer-nos a sorte do brinde ou o azar da fava. Nesse tempo nem sequer se ouvia falar do Pai Natal. Diziam que era o Menino- Jesus quem dava as prendas... eu só fui contemplada numa ocasião, quando, ao acordar no dia de Natal, reparei que ali, mesmo ao lado da minha almofada, havia nascido um regadorzito azul, de plástico . De repente, uma onda de felicidade a invadir-me por dentro!
Não me lembro de que alguma vez tenha regado o que quer que fosse com ele.

Cleo

Tenho em mim um desassossego


Tenho em mim um desassossego de alma, uma alma aflita... diz-me a cara-metade. Uma espécie de chaga que me atormenta o pensamento e me tolda a mente inquinando-me o espírito faminto de paz. É como um rio que, chicoteado pela tempestade corre desgovernado, galgando margens e levando consigo tudo o que lhe aparece pela frente. E o pior é que lhe sinto a fúria e me deixo ir na apatia da frágil canoa sem remos e à mercê da corrente... Pode ser que o sol volte amanhã, a fazer lembrar as primaveras de ontem, onde jardins encantados se cobriam de borboletas esvoaçantes e multicolores que poisavam aqui e ali e também nos sorrisos das pequenas flores que cobriam o chão da minha inocência e me resguardavam do cinzento carregado das nuvens dos invernos que ainda estariam por vir. Ninguém me esclareceu do perigo nem me advertiu para o facto de um dia me achar tão longe a desejar voltar ao sítio onde deixei as primaveras que julgava serem eternas. O que me vale são os retratos do álbum da memória que me não deixam esquecer que a felicidade existe e que podemos ser felizes à distância de um piscar de olhos, se nos contentarmos com isso. São tão simples as coisas pequenas, como simples são os gestos que as tornam tão importantes quanto a nossa capacidade de lhes chegar.

Cleo

quarta-feira, 6 de março de 2019

Paisagem a roçar o surreal




Paisagem a roçar o surreal onde as quelhadas(socalcos) com os seus muros altos(dado a inclinação do terreno), se ligam entre si através de escadas improvisadas, em alguns casos não passando de pedras suspensas nos próprios muros. Hoje tudo isto se encontra ao abandono, mas em tempos idos eram belos retalhos verdes onde o milho era o que predominava, pois era dele que se tirava o pão do homem (broa) bem como o dos animais (palha). Aos de hoje, com tudo o que têm, ser-lhes-à difícil acreditarem em certas coisas pelas quais passaram muitos dos seus antepassados. Pensarão que tudo não passa de histórias... mas não! Acontece que a vida era bem difícil por estas bandas. Fizesse sol, chovesse ou nevasse, era da terra que dependia a vida de famílias onde as bocas eram mais do que muitas e o estado social ainda não tinha sido inventado. Lembro-me de haver pobres que calcorreavam os caminhos das cabras, de aldeia em aldeia, à procura de quem lhes desse uma côdea de broa ou alguma peça de roupa de algum defunto que se tivesse finado, que sempre haveriam de ser melhores do que aqueles trapos que traziam vestidos. Botas, se aparecessem, também não se recusavam, embora os pés já estivessem acostumados a andar descalços. Depois vieram as reformas, dadas por Marcelo Caetano e deixou de haver pobres. Até quando? Fica a pergunta no ar, pois parece-me que estamos a entrar num novo ciclo(a história da humanidade está cheia deles) e nada nos garante que estas terras não voltem a ter gente a cuidar delas. Estiveram de pousio tantos anos que o milho haveria de voltar a ser o ouro em grão da Serra do Açôr.

Cleo

Estive sempre aqui.


Estive sempre aqui. Nunca abandonei esta casa... Naquela manhã em que encontraram o meu corpo já frio, muito embora já o esperassem, mesmo assim, não deixaram de ficar chocados. Afinal, uma morte é sempre uma morte! A doença, especialmente aquela que não tem cura, é como uma espada afiada e apontada à nossa cabeça, que pode descair a qualquer instante. E a que eu tinha por cima da minha, descaiu durante a noite, tão silenciosamente como quando apareceu sem ser esperada e se instalou confortavelmente à espera que chegasse o momento preciso do meu ultimo sopro de vida. Foi o meu irmão mais novo quem me encontrou primeiro, quando na sua inocência de criança se abeirou da minha cama para me acordar, na esperança de que naquele dia eu tivesse mais algumas forças e pudesse por fim levantar-me para poder ir brincar com ele às escondidas no jardim. Era tudo o que ele queria!... Entre choros e soluços, levaram-me o corpo dentro de uma urna branca, mas não puderam levar-me a alma... Essa continua aqui, presa aos sentimentos e às lembranças de quem me concebeu e me deu a vida. A mesma vida que aquela espada gelada me roubou muito antes de ser vivida. Não é justo! Já partiram todos, mas eu ainda continuo aqui, presa a uma vida que não vivi... Já só restam os escombros, mas é o único lugar que conheci deste mundo ao qual já não pertenço há séculos, mas que também foi meu. Talvez um dia me liberte... quando já não restar nada a não ser no pó de uma vaga lembrança. Uma lembrança onde, mesmo assim, ainda permanecerei e farei parte da história de uma casa assombrada, que passou de geração em geração e alguma avó se lembrar de a contar ao seu neto. E será uma daquelas, que, inevitavelmente, começam sempre por "era uma vez" ...


Cleo

De quando em quando, dou por mim


De quando em quando, dou por mim a tentar galgar muros de pedras gastas, na esperança de que o tempo não houvesse passado do outro lado, onde deixei ficar a primeira das minhas vidas. Mas a subida é íngreme. O tempo molestou-me a carne e o corpo perdeu a agilidade. Com as mãos em sangue e os pés trôpegos, vou escalando a custo o que ainda me parece ser tanto! Talvez devesse esperar um pouco, apanhar o tempo distraído de mim e fintar a vida que teima em me dificultar as coisas. Talvez devesse morrer primeiro e renascer depois. Começar tudo de novo...

Cleo

Há portas fechadas


Há portas fechadas que não servem para nada. Estão ali, quietas, mudas, indiferentes ao tempo que faça. Estão ali só porque sim ou porque o último que a fechou não voltou para a abrir antes da derrocada. Se alguém chegasse com a chave enferrujada que tivesse encontrado pendurada num prego de uma parede contígua, a introduzisse na ranhura da fechadura e rodasse o trinco , provavelmente até seria capaz de a abrir, mas não encontraria nada para lá da soleira... só o abismo das ruínas. Há portas que não precisam de ser abertas quando se espreita pela frincha e se fica a perceber, não darem afinal, para nenhures.

 Cleo

Quisera o tempo


Quisera o tempo não ter passado e esta ruína não o seria! Mas vieram invernias e calores demasiados em anos aturados, arremessando-lhe com ventanias e chuvas infinitas que outros tantos sóis crestaram e corcundas surgiram destruindo o alinhamento das pedras. As traves caíram, os barrotes não aguentaram e um estrondo de lages se abateu sobre o chão de terra, rugindo no silêncio da noite que permaneceu aparentemente imperturbável. Ninguém viu. Ninguém ouviu. Bem, talvez os pássaros se tenham assustado. Ficou o esqueleto, cheio de dignidade, porém, vazio daquilo que foi...

Cleo

Trazia uma vida inteira a pingar-lhe dos olhos.



Trazia uma vida inteira a pingar-lhe dos olhos. Na memória, agruras e pobrezas (tantas) que as pedras não dizem. Embrulhada na capucha negra, enxotava o frio que lhe abocanhava os ossos. Mirava ao longe a terra de onde nunca saiu, cheia de estórias de misérias de tempos idos que ninguém ouviu... Agora, que importância terá isso, se a beleza é tudo o que mais importa! Imagens a correr o mundo, a trazer autocarros cheios de gente com máquinas fotográficas e que se debulha em deslumbramentos, como se não houvesse existido passado algum e aquilo tudo já tivesse nascido assim.

Cleo

terça-feira, 5 de março de 2019

Tudo morre um dia...




Tudo morre um dia... Este começo de conversa, traz-me ao pensamento uma frase que ouvia muitas vezes da boca da minha avó, quando, nostálgica, me contava certas coisas que íam emergindo das suas lembranças de outros tempos bem mais remotos ainda. Tempos esses, de onde, de entre uma ninhada de doze irmãos, ela era apenas mais uma criança do campo que nunca teve tempo para o ser. Acho que naquele tempo ninguém o era! Principalmente, se tivessem o infortúnio de terem nascido em berços onde a pobreza morava também. Cedo lhes eram atribuidas pesadas tarefas, não importando muito a tenrura da idade. Sendo que, a de tomar conta dos irmãos mais novos, era tida como a maior e mais importante de todas. À medida que íam crescendo na idade, outras se lhes seguiam, cada vez mais duras até atingirem o estado adulto, num ciclo sem volta. Ainda assim, a minha avó, mantinha aquele ar alegre de riso fácil que lhe era tão característico, mesmo quando me falava das tareias que apanhava por não ter feito esta ou aquela coisa ao jeito do seu pai, homem rude e austero, que lhe não poupava o corpo na hora da fúria, quando esta o assaltava e que em certa ocasião, só por milagre lhe não deu cabo da espinha, com um ancinho mal atirado. Por isso, era-me difícil compreender na altura, que apesar das agruras da vida, ainda rematasse a conversa com aquele: "Ai ai, tudo se vai atrás de quem o deixa". Não era este o rumo que queria ter dado ao texto quando o comecei com aquela frase lá de cima, mas foi assim que ele se escreveu sozinho..

Cleo

Pode até já ter passado o dia






Pode até já ter passado o dia que dizem ser o indicado para te lembrar. Mas... que importância tem isso, se te trago sempre comigo e todos os dias? De vez em quando ouço-te a chamar da porta da oficina para te ir amparar uma prancha mais grossa que não consegues serrar a direito sem a minha ajuda. Ou para segurar numa porta de um guarda-fatos enquanto fixas os parafusos ou lhe dás umas marteladas por dentro até as peças ficarem alinhadas. Ou simplesmente para te segurar na gambiarra enquanto fazes um risco preciso com o lápis que tiras da orelha. Hoje foi dia de aplainar. O barulho da máquina arrancou-me da cama mais cedo. Estas aparas que te estorvam nos pés ficam para mais logo, da parte da tarde, que agora não tenho vagar. Depois venho cá, apanho-as todas e dou-te uma varridela no chão como deve ser. Na prateleira, a velha telefonia (a mesma que nas tardes de domingo, te fazia companhia no relvado do Parque Eduardo VII, quando andavas por Lisboa) sempre na Rádio Renascença por causa das notícias e dos fados da Amália. De vez em quando lá vais buscar as cassetes que metes a tocar no pequeno aparelho de teclas brancas e uma vermelha na extremidade, onde o Alfredo Marceneiro e o Carlos do Carmo te cantam saudades de outros fados... Daqui a nada chega o ti Américo com o caldeiro do leite das cabras na mão e ambos ficarão a conversar enquanto esperam pelo sr. Alberto carteiro, que haverá de aparecer por volta das três horas, como de costume, com a sacola das cartas à tiracolo e a assobiar uma moda. Deve trazer a "Comaca de Arganil" e um punhado de novidades disto e daquilo que aconteceu aqui e ali. Haverá ainda tempo para um copo de vinho na adega, dois dedos de conversa e umas quantas quadras a rimar daquelas que se costumam fazer de improviso, nomeando alcunhas e feitos de conhecidas figuras das redondezas. Hão-de dar umas boas gargalhadas antes de se despedirem com um alegre e já saudoso "até amanhã". Depois, ele abrirá a caixa do correio vermelha que está na parede da nossa casa e tirará do seu interior o monte de cartas que guardará na sua sacola castanha. Ajeita-a ao ombro e de novo o assobio a acompanhá-lo enquanto vai descendo a rua sem pressas. Daí a pouco o barulho da motorizada a dobrar a curva das aveias. Vês? É assim que te vou lembrando todos os dias, à medida que me vão surgindo estes pensamentos de retalhos nossos e por nós vividos, algures num tempo ido e agora apenas por mim, revividos.

Cleo

Mergulhada no seu mundo


Mergulhada no seu mundo de demências(hoje sabemo-lo terem este nome e estar associado à idade avançada das pessoas, mas naquele tempo nem se pensava nisso), era sobretudo de noite que se evidenciavam mais as suas visões de delírio. De modo que, o chamamento por "elas" era constante por causa de uns bichos que se lhe afiguravam passear pelas tábuas do frontal que eram também as paredes do cubículo onde morava há mais de dez anos. Primeiro por birra e depois por imposição da sua própria condição física que entretanto se apoderou do frágil corpo magro, limitando-lhe os movimentos e atirando-o de vez para a cama de ferro encostada a um dos lados, só interrompido pelas cada vez mais frequentes idas ao bacio, para se aliviar de todos os fluídos que lhe pareciam inundar todo o interior e se insurgiam em borbotares incontroláveis de urgências... Ali comia, sentada na cama, não dispensando por coisa nenhuma o pinguito de vinho que lhe metiam no fundo do copo e que para ela era como um elixir de vida. Ah, e de quando em vez um pires de arroz doce (então avó, gostou? Ao que ela respondia de imediato: o que é doce nunca amargou!) a fazer-lhe brilhar os olhos cor de mar. A maior parte do tempo falava em voz alta com os botões do seu casaquito de malha que lhe compunha os ossos dos ombros. Falava das coisas do antigamente que tinha gravadas ainda na memória, tão frescas como se o tempo não houvesse passado desde essa altura. Ao mesmo tempo que dobrava, desdobrava e voltava a dobrar vezes infinitas, o pequeno lenço de assoar numa tentativa de perfeição em forma de quadrado. De quando em vez lá passavam em correria uma ou a outra neta ou até mesmo as das uma a seguir à outra e que também moravam na mesma casa. Bem as chamava para se sentarem um pouco ao pé de si na borda da cama, com a promessa em mente de mil histórias para lhes contar(que quando mais pequenas ali as demoravam), mas elas, com tantos outros afazeres mais apelativos a tomarem-lhes conta dos destinos imediatos e igualmente da vontade. De maneira que, lá se conformava com a sua imensa solidão e às vezes até cantava para quebrar a monotonia daquela existência errante e confinada à clausura naquela espécie de antecâmara onde esperava com tanto vagar, a morte já anunciada desde o dia em que nascera, decorria ainda o já tão longínquo ano de 1896 do Séc. XIX.

Cleo

É como quem mastiga uma côdea de broa seca


É como quem mastiga uma côdea de broa seca, sem dentes... E coisas a embrulharem-se na saliva do pensamento! Esquecimentos que se não entendem, onde coisas novas a sumirem-se por entre os buracos do sobrado da memória. Enquanto isso, o inesquecível passado a intrometer-se sempre e a inquietar o silêncio que grita das profundezas da memória!

 Cleo

Quando viva


Quando viva, costumava andar sempre por ali. Primeiro, antes da perna partida, das canadianas e da solidão da cama perpétua, partilhada com a gatita preta que lhe arranjaram para que tivesse com quem falar de vez em quando... Ainda a caminhar direita. apesar da grossura dos óculos miopes a impedi-la de ver o mundo a longa distância. Costumava não perder nem uma só sagrada missa dos domingos, na igreja da Benfeita mais as outras missas todas e procissões com festas e romarias para onde caminhava sempre a pé, fosse ao santuário da Nossa Senhora das Preces, fosse ao do Mont'Alto e a outras santas igualmente dignas das suas visitas, tudo coisa para muitas horas de caminho visto serem, quase todas elas longe da terra. Mas sempre sem nada nem ninguém a estorvá-la de ir, muito menos as vozes de reprovação nas suas costas às quais fazia ouvidos moucos! E tudo isto para grande desespero da irmã com quem vivia, pessoa muito digna e irrepreensível na sua conduta de fidelidade à condição de mulher solteira, que possuía. Era, portanto, uma alma livre que fazia só o que queria e bem entendesse! De vez em quando, uma ida à vila por causa de um casamento e portanto, uma permanente a carecer das mãos da cabeleireira. Outras vezes, quando não precisava de caracóis a fazerem-na parecer bem, o "Rusga" que aparecia de quando em vez por via de cortar o cabelo aos homens, servia muito bem... De maneira que, um molhito de caruma à cabeça, que atirava para o chão à porta do curral mesmo em frente do lavadouro, onde, o tilintar das campainhas e o cheiro a estrume quente de três ovelhas a ruminarem a erva da desjejua. Lá mais para a tarde, depois da sesta, outro molhito de lenha para a fogueira do inverno e um saco de pinhas, compunham as obrigações a que a si mesma se estipulara. Depois, o resto da tarde, passava-o de conversa com quem calhasse que por ali passasse ou viesse lavar roupa ao lavadouro. Outras vezes, quando não aparecia ninguém, tirava os óculos míopes, e entretinha-se a queimar rente aos olhos, as letras miúdas da Comarca de Arganil que o ti Alberto carteiro lhe havia trazido se fosse Terça ou Quinta-Feira. As notícias, quase sempre as mesmas(fora as crónicas dos ilustres colaboradores com jeito para a crítica), mas, ainda assim, sempre novas derivado ao cheiro da tinta...!

Cleo

Era de madeira



Era de madeira a minha primeira mala, que levei para a escola no meu primeiro dia de aulas aos seis anos de idade.Não seria de admirar se o meu pai não fosse artista em transformar tábuas naquilo que bem quisesse, mas uma mala de madeira... E se calhar, não seria assim tão descabido visto que há pouco tempo lhe tinha sido feita uma encomenda (da parte do barbeiro, o "rusga" da Benfeita) uma mala do mesmo género, onde este arrumava e transportava as traquitanas que lhe eram precisas aquando das deslocações que fazia de terra em terra, acudindo e tratando das guedelhas aos fregueses.. Lá no Pai das Donas, era mesmo ali, na oficina do meu pai que se improvisava a barbearia. Cabelos que íam tombando não resistindo ao frenético tic-tic da tesoura, misturando-se com as aparas e a serradura que cobriam o chão. De maneira que, de mala na mão e sorriso de satisfação plantado no rosto, caminhava de alma cheia na minha ingenuidade infantil, tanta, que nem me apercebia dos olhares e dos cochichos dos outros, que, logo no primeiro dia se não pouparam a fazer pouco de quem surgia do nevoeiro da inocência, levando orgulhosamente na mão, toda a pureza da ingenuidade .A partir daquele dia, a par das letras e dos números, fui começando a aprender também, tudo o resto de que é composto o mundo e as pessoas e que até ali nunca me tinha dado conta.

Cleo

O Ti Américo não ganhou para o susto





O Ti Américo não ganhou para o susto, quando, naquela manhã se dirigiu ao galinheiro por via de abrir a porta às criaturas que já se aborreciam de tanta noite no poleiro. Ao empurrar a porta do páteo deu logo de caras, não só com um, mas com mais de trinta homens por ali enroscados pelo chão fora conforme podiam. Ao que parece, foi o único remédio que tiveram em virtude de terem chegado já noite dentro e ninguém ter sido avisado. Quem eram afinal aqueles homens de farda verde que ali se tinham aquartelado de emergência no páteo do meu vizinho e lhe pregaram um susto de morte, ainda mal o dia tinha rompido? Contaram que os haviam para ali mandado do quartel do Regimento de Engenharia de Espinho e que iriam rasgar uma estrada nova que haveria de ligar o Pai das Donas ao Sardal, qual sonho antigo há muito desejado pelas gentes das duas terras. Naquele ano de 1981 não mais houve parança na aldeia... Eu fui logo promovida a lavadeira! Nem me importava com a trabalheira que me davam tantos lençóis encardidos de nós nas pontas, cuja cor parda eu consegui o milagre de transformar em branco. Era um vai-vém de carros da tropa de um lado para o outro, os magalas rua acima e rua abaixo, as máquinas numa ronqueira danada por aqueles pinhais fora e as raparigas da terra mais contentes que em dias de festa. Quase todas as noites se faziam bailes, lembrando outros tempos de que os mais antigos falavam dando conta de dois à mesma hora, um no oiteiro e outro na fonte fundeira

Cleo

Não importava o dia


Não importava o dia; tanto poderia ser Segunda como Terça-feira, ou até mesmo, qualquer outro menos ao Domingo. Primeiro traziam a lenha, uma pinha ou duas e uns gravetos miudos para o lume pegar bem, depois umas ganhotas mais grossas a criar brasas e aquecer a divisão a que chamavam cozinha. Uma escuridão de degraus e ao cimo, a um canto, um fogãozito de dois bicos agarrado a uma mangueira castanha que desaparecia por detrás de uma cortina onde uma garrafa de gáz escondida. Uma mesa de madeira com uma só gaveta, Quatro bancos mochos sob o tampo e mais um ou dois baixitos compunham o mobiliário. Numa prateleira, o rádio a pilhas a entornar barulho numa rouquidão de fraquezas de antena. Ao lado do forno, a pilheira onde panelas de ferro resignadas em esperas de servidão. A massa na gamela tapada com panos, já quase lêveda e daí a nada a minha mãe com a sua à cabeça a subir a escuridão dos degraus, porque a casa sem electricidade e portanto, sem interruptor nem lâmpada. E ficavam ali mais um pouco a conversar das dores duma e da outra, a fazer tempo, e, nisto, o forno já quente o suficiente. De modo que, primeiro a da casa, está visto, e a escudela em estremeções de trapezista a elevar e a voltar a aparar um pedaço de massa redondo que mãos hábeis tornavam tão fácil tender enquanto a outra a levá-las ao forno uma a uma, a ajeitá-las lá bem no fundo de modo a caberem todas. As da minha mãe com um sinal em forma de umbigo para se não confundirem e depois a chatice das broas de uma na outra família(algumas outras, faziam-lhe uma cruz), mesmo sem diferenças no paladar. Nós por ali aos pulos, entretidos a brincar a qualquer coisa enquanto elas a conversar entre uma e outra tendidela, num vai e vem de pá ao forno. No fim, um restito de massa a dar forma a uma esmagada de sardinha e outra de chouriça deitadas ali mesmo, ao pé da porta, visto que estas a cozerem-se mais depressa. Algum tempo depois, eis que era tempo de abrir a porta ao forno e observar se a broa já estava cozida. E elas tão lindas e já crescidas lá dentro, "escarapiadinhas" que até dava gosto de ver... E o cheirinho a encher a casa toda e a deixar-nos de água na boca e uma fome repentina!

Cleo

Agora vamos ali comer um pedaço de lombo


"Agora vamos ali comer um pedaço de lombo" - disse o meu pai enquanto ajeitava ao ombro, ali mesmo ao pé da capelinha de Santa Rita, a pasta de cabedal das ferramentas, dando por terminado o trabalho de restauro de uma mobília de sala na casa do juíz da Benfeita. E eu, na minha inocência, levei a frase à letra e julguei que se tratava da merenda muito embora já estivessemos na rua e começasse a escurecer... O lombo começava logo a seguir à ponte que atravessava a ribeira e seguia para lá da "fonte das moscas". Afinal era o caminho que nos esperava pela encosta acima, até ao Pai das Donas, a aldeia onde morávamos. Uma boa hora de caminho e sem muito descuido! A noite cerrada veio esperar-nos junto aos castanheiros do vale, garantindo-nos a sua companhia por um bom pedaço de caminho ainda, todo ele feito às apalpadelas por entre raízes de castanheiros e caruma escorregadia. De maneira que, já passava da hora habitual do jantar, quando, finalmente, nos sentámos à mesa da cozinha para matar a fome que aquele lombo nos tinha pregado entre as costelas e o estômago. Nada que um bom prato de sopa(a tranca da barriga, como eles diziam)não curasse, logo seguido do das batatas com couves e sardinha frita, que, vá-se lá saber porquê, naquele dia me soube a carne fresca!

 Cleo

sexta-feira, 1 de março de 2019

Sentada no cimo


Sentada no cimo de um dos montes da Serra do Açôr, numa das fraldas da Deguimbra mas virada para o nascente por via de não perder pitada do exuberante espectáculo da chegada do nosso astro rei (Sol) a cada novo dia, que, generosamente, lhe vem aquecer e iluminar o âmago, sorri para a vida uma pequena aldeia de seu nome Pai das Donas. Mesmo à sua frente, outras aldeias se desenham em salpicos brancos sobre o verde da encosta. Lá estão os Pardieiros, o Monte frio e a Relva Velha. Lá em baixo, mesmo ao fundo do vale, ergue-se em forma de cavalo a galope (sempre foi assim que se me afigurava quando para ela olhava da minha janela), a majestosa Benfeita. Terra grande com sede de freguesia sob a qual girava a social vida de todas as outras; quais servas abelhas em torno da colmeia real. Coisas mais ou menos importantes eram tratadas ali. Havia ainda os correios, o posto médico, a junta de freguesia, a igreja matriz para a missa de todos os domingos, a loja de panos e atoalhados da Xica (que à semana também era sardinheira e nos vinha rogar a sardinha à porta, mas aos domingos vendia peças a metro ao lado do marido por detrás do balcão de madeira da sua loja para os vestidos novos das moças casadoiras, que haveriam de ser feitos por medida na costureira). Havia ainda a padaria à Ponte Fundeira e, claro, duas lojas de mercearias. A do Péssimo e a do "correio". A do Ti Zé Maçarocas era a que mais freguesia tinha e para onde se encaminhavam os de fora, já de alma purificada depois da missa, em virtude de nas suas aldeias quase nada haver e sempre era preciso algum açúcar para meter no café de manhã, bem como massa ou arroz para desenfastiar das batatas e dos feijões que a terra dava com fartura. Ah, e claro, o fiel amigo bacalhau, o atum e mais alguma coisita que fizesse falta e não houvesse nas arcas ou na salgadeira, dado que a panela das aflições não durava para sempre... Gente simples povoava quase todas as casas, bem diferente dos dias de hoje, que se contam pelos dedos das mãos as pessoas que restam. O dia começava bem cedo onde roçadoiras e foicinhos não conheciam o descanso. Mato e erva para os animais que já reclamavam nos currais. Ancinhos em punho, cavavam as terras à mão, não sem antes as "esbeirar" e "esbordinhar" em toda a volta. Enxadas e sacholas compunham os regos até se formarem verdadeiras obras de arte a fazer inveja aos artistas de outras artes. Ali, todos direitinhos, a orgulharem-se do criador e a encher quelhadas de cômoro em cômoro. Socalcos e socalcos de terras que dava gosto ver por todas aquelas encostas acima. Desde a sementeira do renovo até ao seu recolher. Também havia fazendas mais longe, ao pé das nascentes que os mouros descobriram alguns séculos antes e onde construíram algares de xisto, que era preciso mais de uma hora ou duas a andar bem, para lá chegar. Tudo era amanhado, tudo verdejava de vida. Hoje só as silvas e os matagais a tomarem conta de tudo. Restam alguns currais ou ruínas dos mesmos, a lembrar que ali já houve gente. Muitos deles, totalmente engolidos pela natureza que voltou a reclamar aquilo que por direito já antes lhe pertencia. Foi ali que cresci, entre pinhais e olivais, ladeiras e fragas. Aprendi e senti na pele a dureza do trabalho da terra, sempre com a esperança de que um dia haveria de ser melhor. E foi. Um pouco. Mas não me esqueço de me lembrar sempre do lugar onde estão as melhores memórias que alguém pode guardar. Aquelas da idade quando tenra, recheadas de inocência e ainda livres de outros males que no decorrer da vida vão pesando e transformando o semblante de cada qual. Volto lá sempre com a mesma excitação de quem volta ao sítio onde foi feliz. Guardo em cada esquina qualquer coisa que me leva a viajar no tempo e volto a encontrar-me comigo nesse outro tempo onde estão todos os outros e todas aquelas vivências em suspenso.

Cleo

... é preciso ir ao mato!



" Anda, toca a levantar que é preciso ir ao mato!" - A frase caía como uma vergastada matinal. De maneira que, sem outro remédio e a custo, lá metia os pés no chão e enfiava a roupa o mais depressa que podia por causa do frio que por aquelas alturas do inverno costumava ser a sério. Depois de lavar os olhos e a ponta do nariz com um fio de água que saía da torneira gelada, uma malga de pão migado com café de cevada a ferver e um pinguito de leite a cortar o negro, desjejuava a barriga vazia. Uma saca ao ombro e uma corda por cima, a roçadoira afiada na mão e ala que se fazia tarde a caminho da cumeada. Pelo caminho, já uma serra de mato aos ombros da Zézinha e o sol a romper ao cimo da Relva Velha...

 Cleo