sexta-feira, 22 de março de 2019
A propósito de um livro de Manuel Alegre
A propósito de um livro de Manuel Alegre(o nosso político mais poeta que se conhece), editado e lançado há uns anos e ao qual deu o curioso título: "O miúdo que pregava pregos numa tábua". Ora, veio-me imediatamente à ideia, a minha remota infância, em que, numa coincidência nostálgica, me reportou no tempo ao mesmo pé de igualdade da deste miúdo do livro. Assim sendo e não pretendendo usurpar coisíssima nenhuma ao autor deste livro, a não ser o que o seu título me despertou nas lembranças e onde era eu a miúda que pregava pregos numa tábua... O meu pai era marceneiro e era por ali, dentro da sua pequena oficina, que eu ficava a maior parte dos dias enquanto a minha mãe se ocupava dos trabalhos do campo a que estava obrigada. Entretinha-me pois, a brincar com o que tinha mais à mão. E o que mais poderia ser, se não pregos, um pequeno martelo sem orelhas que eu tanto gostava, talvez por ser assim pequeno como eu... e os também pequenos quadradinhos de madeira de todas as formas e tamanhos que eu descobria no meio das aparas e da serradura que cobriam todo o chão daquela oficina. De maneira que, pregava pregos e dedos, e, no fim, ficava um tanto ou quanto desiludida com a minha obra final. É que tinha a mania de querer fazer em ponto pequeno o que via o meu pai fazer em tamanho grande!... Talvez um pouco fora do contexto, mas, ainda assim, e por se tratar de algo que reporta àquele mesmo tempo, não me posso esquecer daquele homem que, de tempos a tempos, passava à porta da oficina e assomava na soleira da porta, mendigando qualquer coisinha que lhe forrasse o estômago ou lhe agasalhasse o corpo já tão castigado pelo frio dos Invernos rigorosos daquela época. Naquele tempo viam-se alguns pedintes solitários que calcorreavam antigos caminhos de cabras que só eles conheciam e que os levava de terra em terra, mendigando uma côdea de broa aqui e ali ou uma peça de roupa ou de calçado que já não servisse ou fizesse falta a ninguém, fazendo desse modo de vida, a sua odisseia existencial. Falei neste pobre homem, porque é incontornável a lembrança daquele episódio caricato e que ainda hoje é motivo de gargalhadas sempre que alguém se lembra e se fala nele. Então dizia o homem, virando-se para o meu pai, já depois de ter morto a fome e enquanto descansava da jornada, regando o cansaço com um copito de vinho - Ó Ti Abílio, e se você me desse uma tábua e um prego para eu levar comigo e quando chegasse à minha terra a pregasse numa parede que lá há? A ver o que é que dava!...
Cleo
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