terça-feira, 28 de março de 2023


Lembro-me da figueira com dois ou três figos que ninguém comia (talvez por dó ou respeito à sua velhice, não sei) na ponta de um ramo tísico, amarelado de icterícia. Costumava subir por ela acima, para espreitar o que se escondia por detrás do muro alto do outro lado da rua. Um muro que afinal não o era assim tanto como parecia. Mas, é claro, quando somos pequenos, todos os muros nos parecem altos! O muro era assustador visto que, no cimo arredondado, cacos de vidros espetados, me impediam de o tentar saltar até em pensamento...
Um pedaço de terra abandonado, umas flores entristecidas de sede e uma casa caiada de portas e janelas fechadas, com uma varanda a dar para o quintal onde uma macieira bravo-esmolfe gigante a afrontar-lhe as vistas, era tudo o que havia para lá do muro. Duas vezes por ano um casal de meia-idade a chegar num carro de praça. O homem, todo ele suspensórios que lhe seguravam as calças de quando tinha sido gordo e agora um verdadeiro palito. A mulher, uma doçura de pessoa de quem eu gostava imenso e que nos tricotava sapatos de dormir e gorros de lã com uma bolazita na ponta, que nos agasalhavam os pés e a cabeça quando os rigores do inverno apertavam e nos enregelavam até aos ossos.
Abriam o portão que chiava, também ele, certamente, perro do reumático e falta de uso, e desapareciam por detrás do muro.
No dia seguinte começava a faina de duas ou três semanas no amanho dos quintais. O corte das ervas longas e das silvas, o esbordinhar para que as bordas ajetadinhas e a parecerem bem. E tudo aquilo a culminar com a sementeira das batatas que todos os anos se fazia (e que anos mais tarde: vá, vamos lá que isto é uma pressa!.. E já quase noite e nós ali a esconder a semente nos regos, a despejar-lhe o adubo, a puxar o raspão com a enxada e a cavar-lhe a terra para de cima) e que, com sorte, talvez dessem para o adubo… Sem água e cuidados, não há renovo que vingue. De tal modo que, meses mais tarde umas batatitas miúdas a verem a luz do dia.


 

quinta-feira, 23 de março de 2023


 Em dia de missa dominical as pessoas a chegarem de todos os lados, pelos atalhos por meio de pinhais que encurtavam o caminho. E mulheres descalças a passarem os pés pela bica da fonte das moscas antes de calçarem as meias de vidro e os sapatos que levavam num saco de plástico...

Terminada a missa e ouvidos os últimos recados do prior, uma última benzedura e todos a sairem ordeiramente da igreja para dar início às saudações de apertos de mão, abraços ou beijinhos conforme as pessoas e o grau de intimidade entre cada qual. As conversas e as gargalhadas a ecoarem ao longe visto que o adro cheio como um ovo e todos a conviverem pom para as mercearias tendo em vista o desejor breves momentos antes de se esgueirare de se aviarem depressa do que lhes era preciso para toda a semana. E aí a saberem das novidades mais ou menos importantes. Era conforme. De modo que, de vez em quando alguém organizava uma excursão a este ao àquele lugar e assim a notícia a espalhar-se depressa por todas as terras da freguesia.

Certa ocasião, os meus pais decidiram ir também num desses passeios de três dias, organizado de modo a visitar alguns dos mais belos lugares do norte do país. De maneira que, a minha mãe a ter de deixar mato e erva com fartura para os animais e uma vizinha das que não íam na excursão, a fazer o favor de lá ir tratar dos animais de manhã e à noite.

Fez também uma carne assada que cortou em fatias, pasteis de bacalhau e cozeu uma fornada de broa. No resto, para aproveitar o calor das brasas, preparou uma caçoila com um coelho e batatas e deitou-a ao forno a assar bem como um frango que teria de sair corado e ainda um tachito de tigelada para ajudar a compôr o farnel que haveria de dar para os tês dias. Umas azeitonas e um queijo de ovelha curado, rematavam o que faltava. E lá fomos nós, no dia da excursão, todos contentes de madrugada, numa boleia na carrinha do Ti Américo, que nos fez o favor de ir levar à Benfeita, onde já estavam outros felizardos, excitados pela aventura prestes a acontecer, também com as suas cestas do farnel ao lado, prontos para entrarem na camioneta que os levaria a conhecer outras terras e lugares diferentes.


A primeira dessas refeições em modo de piquenique foi num pinhal, em virtude de se aproveitar a sombra dos pinheiros. Estenderam-se mantas de trapos e por cima delas toalhas de mesa, que se foi enchendo de coisas daquelas que já vos tinha dito... Adultos e crianças todos sentados em volta da mesa improvisada e toca a comer que o estômago não se compadece com passeios de fazerem bem à alma!!!...

quarta-feira, 22 de março de 2023



Em 1951, a minha mãe tinha 9 anos de idade e vivia com a sua mãe e irmã na terra onde nascera. Murganheira, uma aldeia da freguesia de Pombeiro da Beira, mesmo ao pé do santuário de Santa Quitéria, que, naquele tempo, seria já bastante concorrido por alturas da festa anual.
Como o berço onde nascera era dos mais pobres que se possam imaginar, foi com essa mesma idade que uma prima a levou consigo para Lisboa, com promessas de uma boa casa, para a qual iria servir e ganhar algum dinheiro para ajudar no sustento do lar. Não sem antes disso, ter de trabalhar para essa prima enquanto a dita casa não aparecia... De modo que, contando-me mais tarde quando se proporcionava em conversa, de uma vez, trazia ela uma bilha de leite à cabeça, pesadíssima para o seu tamanho e fraqueza de corpo, e vindo a descer uma rua cravejada de penedos escorregadios e com tão fraco calçado nos pés, estes lhe desandam de tal modo que não teve como se segurar. Nem a ela nem à bilha, caindo ambas desamparadas e a pés juntos, no chão. E o inevitável a acontecer mesmo na frente dos seus olhos impotentes, ao verem derramar-se o leite que, a manchar de branco os penedos lisos da rua e de negro a sua alma em aflição.
Dado que as desculpas não serviriam para a livrar, ainda haveria de levar uma tareia por se ter deixado cair...
Algum tempo depois e tendo já ao seu cuidado várias tarefas domésticas, ao recolher os pratos da mesa dos senhores no final da refeição, tendo estes comido maçãs à sobremesa porque as cascas a regressarem nos pratos e ela a vê-las ali e uma vontade de comer maçã a crecer-lhe na saliva da boca. Mas como as maçãs a não serem para os dentes das criadas, lavou as cascas e estas a saberem-lhe tão bem como se fossem maçãs inteiras!
Mais tarde, depois de tudo já devidamente arrumado e de ter feito um pedaço de renda para a patroa e outro para o seu enxoval, o cansaço a fazer com que adormecesse na água quente da banheira até acordar com ela já fria, no desconforto do corpo gelado.
Houve casas onde havia também crianças de colo a carecerem de quem lhes desse atenção quando os pais não estavam. De quem lhes mudasse a fralda, que nesse tempo eram de pano e lavadas à mão. De quem lhes desse a papinha na boca e colo quando chorassem...
Ao domingo podia sair e ir dar uma volta com alguma amiga, que geralmente eram colegas que a mesma sorte fizera com que se conhecessem no mercado, onde iam comprar as coisas que cozinhavam nas casas onde serviam. Em certa ocasião até foram à Praia das Maçãs. Embora não tivessem fato de banho, nem vestido nem por vestir, não deixaram de tirar um retrato para mais tarde recordar... Lá estão elas a sorrir de contentes, no areal da praia num dia cheio de sol.
Ou então, optava por passar a tarde do mesmo domingo em casa de alguém conhecido, penso que familiar de não sei quem e onde o destino quis que por ironia ou não, viesse ali a conhecer aquele com quem haveria de construir uma nova vida, longe de patrões e senhores cheios de salamaleques e outros tiques burgueses, onde coubesse também a nossa.
A minha vida dava um romance, dizia-me ela. E dava, de facto.
Fim do primeiro capítulo!
Cleo
Foto - O retrato de que falo no texto, na praia das Maçãs ali pelos primeiros anos da década de sessenta do século passado, sendo que as jovens sentadas na areia seriam a minha mãe(à direita) e a sua amiga e colega de então e cujo nome se perdeu na espuma do tempo...

Cleo



 

segunda-feira, 20 de março de 2023







No tempo em que me criei, havia sempre uma velhinha sentada num banco a um canto da cozinha de qualquer casa onde entrasse. Geralmente com a minha mãe quando íamos a passar na rua e alguém nos chamava por um motivo qualquer, para dar algum recado, para ler uma carta, para levar alguma coisa ou simplesmente para fazer uma visita num domingo à tarde que era quando havia mais vagar...Vestidas de preto porque ou eram viúvas ou estariam de luto por alguém chegado e da família. Um lenço na cabeça a tapar o carrapito preso com ganchos de arame. De avental à frente da saia por causa de a poupar à sujidade, mas também porque a aba do avental a servir para as cascas das ervilhas ou das favas quando era tempo delas, dos feijões louros para a sopa ou dos secos para arrumar na arca. Elas estavam ali sentadas por já não poderem andar, mas ajudavam naquilo que podiam visto que o trabalho chegava para todos e até ainda sobrava em certas alturas do ano. De maneira que as conheci a bem dizer a todas, sentadas num banco mocho, a um canto das cozinhas, se de inverno junto à lareira ou ao fogão de ferro, conforme os casos. A minha avó era uma dessas velhinhas que me lembro de ter conhecido e partilhado consigo belos e inesquecíveis pedaços de tempo, entre gargalhadas e histórias que me contava, no bordo da sua fogueira, junto ao lume que ela tanto gostava de fazer e ver a crepitar  - Ah, que boa fogueirola esta que aqui temos! - E nisto dava uma sonora gargalhada a denunciar a sua alegria contagiante que me levava a sentir o mesmo.A Ti Hermínia igualmente sentada na cozinhazita da sua casa, talvez entretido a descascar alguma coisa, enquanto a nora Esmeralda a tratar do amanho do milho no chão grande da Ribeira e o filho Tonecas, na sua faina de fazer colheres de pau, ali mesmo, por detrás do portão do pátio mesmo em frente da porta de casa.Também me lembro da sua irmã (da qual me não recorda o nome), também ela sentada num banco em frente do fogão a lenha por causa do estupor do frio... enquanto a prima Lucinda, sua filha, a fazer a sopa. E o genro António(o alfaiate como era conhecido) na sua oficina de alfaiate mais o neto Brasílio, numa faina imparável de tesouras, linhas e agulhas. Sempre que ali passava na rua, mesmo por baixo do varandim, lá estava a máquina a trabalhar e a cortar o silêncio da mudez das agulhas e linhas quando cosiam à mão. Aos domingos, ainda o sol tão longe de nascer e eles já a abalarem com a carrinha atacada de coisas que vendiam a quem delas precisava - colchas, cobertores, lençois, toalhas, etc, etc... -  mais os fatos que lhes haviam encomendado, alguns já prontos e outros alinhavados para fazerem as provas, a caminho das aldeias perdidas nos montes e vales da serra. Hoje, a tão badalada Serra do Açôr.Nas Luadas era a mesma coisa. Uma vez a tia Albertina levou-me a conhecer as suas amigas. De modo que, cortámos ali para um becozito por cima da rua onde ela morava e fomos dar com uma mão cheia delas sentadas nas soleiras das suas portas, de pernas estendidas ao sol com os pés descalços... Fizeram-nos uma festa!
Cleo

quinta-feira, 16 de março de 2023



Tal como em tantas outras terras, o Verão a trazer-nos os que vinham de Lisboa e por ali faziam morada por algumas semanas em gozo de férias. Traziam os automóveis cheios de malas e sacos que descarregavam em delírio, numa animação de prisioneiros libertados. As mulheres a tratarem logo das humidades e das rendilhadas teias de aranha que ornamentavam cantos de paredes. Caliças caídas com vassouras enérgicas, arredando móveis e abrindo janelas por causa das poeiras. De maneira que, de pó limpo e chão esfregado e encerado, a parecer logo outra coisa!
A prima Lucinda a trazer também as netas e a Paula e dali a nada o lavadouro cheio de animadas conversas e risadas que eu ouvia do oiteiro, anunciando-me quem tinha chegado.
Da Peneda, chegava-me o recado para lá dar um salto no fim do almoço, que a prima Fernanda tinha mandado dizer. E, claro, findo o almoço lá estava eu a bater-lhe à porta com um cestito de batatas e umas cebolas mais um raminho de salsa que a minha mãe lhe mandava. E ela a dizer - a tua mãe é fantástica, até o miminho da salsa!... - e eu a concordar num aceno de cabeça. E depois de um sem número de perguntas e respostas e umas gargalhadas bem dadas numa euforia de quem enche uma casa de alegria, eu a voltar com uma sacada de roupa e calçado que ela nos tinha trazido e aquilo para nós a ter o mesmo valor como se fosse acabadinho de comprar numa boutique ou na feira de Arganil, que, para mim, era a mesma coisa. Tudo como se fosse novo!
Os rapazes, ávidos de liberdade, a fazerem corridas de bicicletas até ao largo da capela e a voltarem na boleia do balanço, de pedais e de músculos pelo íngreme da ladeira, num só fôlego.
No oiteiro, o rádio do primo Fernando em cantorias infernais de cassetes piratas e a prima Lurdes a ter de falar mais alto para os dela a ouvirem por via de não interromper o Roberto Leal. E nisto o primo Fernando em dificuldades de calos, a vir cumprimentar-nos sem se importar com a cassete que lá ficou aos berros dentro do aparelho.
E o corrupio de gente a querer telefonar em virtude dos telemóveis ainda por inventar. Ali a conviverem na brevidade de uns instantes, que, sem se aperceberem, a valerem por uma vida cheia de vazios...
Cleo
Foto - Dois amigos de infância nas suas bicicletas, ao oiteiro, onde ainda se vê a torre do relógio que era fei
 ta em xisto e que foi entretanto deitada abaixo por questões de segurança, Na nossa aldeia - Pai das Donas (Arganil)



De vez em quando, alguém a chegar com uma carta na mão e a falta de um selo. De maneira que, a solicitarem a compra do mesmo para quando chegasse o Ti Alberto carteiro, ali a seguir ao almoço, para a recolha habitual na caixa de correio presa por dois pregos grossos à parede da nossa casa do lado de fora.
De modo que, o meu pai a largar o que estivesse a fazer naquele instante, que, tanto podia ser pousar a plaina com que estivesse a alisar alguma tábua presa ao torno do banco de trabalho onde se debruçava a cada investida de força na plaina, para cá e para lá numa faina de aparas enroladas que ele de vez em quando tirava com os dedos porque a prenderem-se junto à cunha da lâmina. E deixava que caíssem no chão empurrando-as com os pés para o monte em volta da máquina, onde já um espesso manto de serradura e aparas a denunciarem o intenso trabalho de horas intermináveis e bastante esforço de alguns serões obrigados pelos compromissos... Uma cómoda para os Pardieiros, uma cristaleira para a Benfeita, uma mesa elástica para o Enxudro...
Ou, se se desse o caso de estar a trabalhar com ela, desligar a máquina de serrar barulhenta onde um disco a rodar infernalmente, a queixar-se da dureza da madeira de cada vez que o meu pai ali a chegar-lhe um pedaço riscado a lápis, por onde o disco a passar e a dividi-la ao meio.
De maneira que ele a largar tudo isso para ir à gaveta do móvel que fez para substituir a secretária que tivera de vender ao senhor dos Cepos que costumava lá ir contar a luz e a quem ardera a casa e o que lá havia dentro, num incêndio medonho ocorrido por aqueles anos. Um selo ou dois até ao valor que era preciso e a carta a ir pela ranhura da caixa encarnada e o meu pai a guardar as moedas na gaveta e a fechá-la à chave outra vez e a voltar ao trabalho até vir outra pessoa qualquer com outra carta por selar ou um qualquer telefonema importante ou não, porque o telefone ali também ao lado e público. Um contador de impulsos instalado junto ao interruptor da luz fluorscente do tecto da oficina a deitar números a espaços de tempo e no fim a ter de se fazerem contas de multiplicar, a maior parte das vezes a fazê-las de cabeça perante a minha admiração porque a sentir-me incapaz...
Cleo




O marceneiro, á porta da sua oficina, a serrar uma tábua para aplicar na cama que está a fazer, porque a cabeceira já pronta e encostada à parede. A fazer-lhe companhia e a julgar. pelo que, décadas depois, acontecia com o sobrinho que lhe seguiu as pisadas, no interior da mesma oficina, os amigos do costume para dois dedos de conversa... Na janela de sacada, a dar fé do que se passa, a sua mulher, numa pausa das lides da casa.
O artista e a mulher, eram os donos da casa onde me criei, tios do meu pai, a quem criaram como filho, ensinaram a ser gente e lhe deixaram também a magra "fortuna"... Firmino e Guilhermina, dois nomes que me encheram a infância ainda que já lá não os encontrasse. Quer dizer, à tia Guilhermina ainda cheguei a conhecer e era capaz de jurar que me lembro ainda do aconchego do seu colo, para onde costumava ir, dado que a minha mãe sem vagar..
Em espírito, ainda hoje por lá permanecem os dois, a tomarem conta dela na nossa ausência...
Foto - Talvez dos anos 20/30 do século passado. *A casa onde me criei com o seu aspecto original. Construída pelo casal que mencionei no texto, cujas pedras ambos acartaram às costas! *


 


É como quem folheia um jornal antigo, encontrado por acaso numa prateleira de um psiché esquecido num quarto, que, desde o último ali falecido, não mais ninguém a usar a cama nem o guarda-fatos, nem o bacio guardado do lado de dentro da portinhola da mesa de cabeceira em cujo tampo, um despertador de corda com números luminosos ao pé de uma senhora de cabelo arranjado e a sorrir dentro de uma moldura, em cima de um naperon beje, de rosetas com linha fina.
De maneira que, abre-se o jornal, com notícias de há meio século atrás e, a acompanhar um texto mais ou menos longo, uma fotografia igual a esta, só que muito mais baça do que esta porque afinal a tinta já com tantos anos.
E também, quem sabe, talvez derivado ao desgaste do esquecimento disto tudo...


 




Eram tempos difíceis. Tão difíceis e miseráveis, que o próprio tempo se encarregou de trancar a sete chaves nos calabouços do esquecimento, para que, dele, não mais se ouvisse falar. Contudo, não havia como calar as memórias dos que dele sabiam. E o que sabiam, não era pouco!
Naquele tempo Lisboa ficava a 18 dias bem contados, palmilhados de tamancos ao ombro. Isto pelas contas de um primo da minha avó Ermelinda que vivia na Panasqueira e que tinha os olhos da mesma cor dos dela que eram azuis claros, da cor do mar em dias de sol.
Duas ou três casas viradas para as Luadas e umas quantas calhadas a verdejarem, era tudo o que ali havia. Trabalho, era o do dia fora do costume. Ou seja, de ancinho na mão a cavar terra o dia todo. Desde antes de o sol nascer até já depois deste se ter posto, enquanto desse para ver alguma coisa. E o ganho, esse, mal dava para as sardinhas e o cigarrito, que, de vez em quando a tirar da algibeira e a enrolar entre os dedos por causa de matar o vício...
Terá sido por isso que ele e o meu avô, igualmente pelos mesmos motivos, terão combinado e resolvido meterem os pés ao caminho até à cidade grande, em busca de um dinheirito melhor.
Dado que os automóveis eram coisa de ricos e o custo do bilhete do comboio ser demasiado para tão poucas posses, não houve outro remédio se não o de ir a pé. Imaginem... Impensável nos dias de hoje!
A tia Albertina também por lá viveu meia dúzia de anos. Ali para os lados da Mouraria, num vão de escada onde lhe cabia a cama e pouco mais. Uma escada por onde passavam de cambulhada os inquilinos do prédio todo e a todas as horas do dia. A trote, escada abaixo escada acima, mas que a não impediam de dormir até ao meio dia... Mas já depois de ter ido buscar dois papos secos e um quarto de litro de leite para misturar no café de cevada do companheiro que consigo partilhava a mesma vida embrulhada em pobrezas.
Do que me lembro de me contarem, os dois primos lá chegaram por fim, desgastados da lonjura do caminho, calçando os tamancos à entrada. Quem andasse pelas ruas da baixa e nalguns bairros, haveria de os encontrar por ali, com o carrego dos cestos ou cabazes da fruta e hortaliças às costas, que, de pregão na garganta, lá iam vendendo aos fregueses de ocasião.


 


É como num sonho, só que estas são imagens antigas a passarem-me na mente como se de um filme se tratasse, sem pertencerem a nenhum sonho. Aconteceram mesmo. São reais, mas bastante antigas visto serem das primeiras de que me lembro.
Seria por certo inverno, porque a claridade que a porta meia aberta deixava entrar, a não ser quase nenhuma. Provavelmente o céu carregado de nuvens cinzentas, escuras. Ou talvez até estivesse a chover mesmo. Disso não me recordo.
Lá dentro, o único conforto que existia era uma salamandra a engolir cavacas e para o pé da qual se chegavam os que vinham da rua e ali paravam a dizer qualquer coisa. Um pretexto para aquecer as mãos e os pés, antes de irem todos matar o bicho que estava escondido dentro das pipas na adega.
Nesta memória, naquele dia, uma panela cheia de grude castanho a derreter devagar. Uma mexidelazita de vez em quando com uma ripa curta e, daí a um pedaço, o meu pai com um pincelito a molhar no grude e a esfregar as ranhuras das tábuas onde antes a lâmina afiada do formão, o raspador e a lixa no restante. De seguida as outras com pequenas saliências nos mesmos sítios a encaixarem-se na perfeição, como se fossem peças de um lego qualquer.
Ele a aplicar-lhes uns grampos de rosca e a encostá-las ao alto a um canto para que secassem bem antes de lhes dar o destino final. Talvez uma cabeceira de uma cama ou umas gavetas de alguma cómoda...


 



E lá vem a Ti Silvéria do fundo com uma cesta cheia de maçãs à cabeça. Vem ali do quintal que tem ao Oiteiro, junto ao curralito onde costumavam morar as ovelhas quando o esterco era preciso por causa de adubar a terra aquando da sementeira. As árvores de fruto também agradeciam produzindo grandes e vistosas maçãs e pêras que ali vão agora na cesta.
Ainda lá ficaram algumas miúdas aquém e além, nas árvores, a ver se ganham mais corpo. Ou então, talvez as tenham ali deixado de propósito. Um pretextozito para o rebusco.
Num dia destes, pela tardinha, a canalha por ali aos saltos e a fazer uma grelhida* tamanha dado serem muitos e estarem contentes só por isso, o Ti Augusto Custódio mais o cão a virem por ali acima, a olhar para as árvores e a contá-las a ver se ainda por lá estariam todas... E nisto, a ir apanhar uma ou duas e a tirar-lhe a casca com a navalhita que trazia no bolso, sentado no muro junto à entrada da mina que secou há uma data de anos. Tira uma lasca e mete-a à boca e outra que atira ao cão e que este apanha no ar num ápice que mais parece um tique nervoso em virtude de nem dar tempo de se ver o que era...
Noutro dia qualquer a virem os dois mais o cão e a repetirem tudo outra vez. E o tempo a passar-se e eu aqui a escrever do que me lembro, ou, por tantas vezes o ter visto, o que se me afigura ter sido assim.


Chamados ao quadro, em dia de revista semanal, um a um, lá iam cada qual na sua vez (a tremer de medo), de cabeça tombada e olhos no chão. A vistoria fazia-se com um prego comprido e grosso (chamavam-lhe um prego de solho) a vasculhar por entre as guedelhas, à cata dos piolhos, que, por vezes, se não achavam mas que se adivinhavam porque as lêndeas a luzirem agarradas aos fios de cabelo. Com sorte voltava para o lugar sem mais humilhações mas quase sempre sem sorte nenhuma(os mesmos de sempre, claro) e a terem de se sentar ainda, na borda do estrado, mesmo à frente de todos, a desatarem os atacadores das botas de todos os dias porque a não terem outras e as meias se as tivessem, porque os pés a serem igualmente inspecionados e, no caso de estarem sujos, a terem de esticar as mãos para a aplicação de umas quantas réguadas por isso... E eu a sentir-me incomodada porque a conhecer as misérias da razão de alguns e a professora não.
No fim, um recado para casa a ordenar a cabeça rapada no dia a seguir ou não entrariam na escola. E, claro, mais a recomendação dos pés lavados sob pena de uma nova e punitiva humilhação à frente dos colegas, bem diferente daquela outra a que outros afortunados ali chamados, igualmente ao quadro, mas por causa do engano das contas redondas e dos problemas bicudos.


 




De ancinho ao ombro e uma cesta vazia em cima da rodilha à cabeça, lá vai ela, descalça, a desaparecer numa pressa por entre as ervas altas que ladeiam o caminho que a leva.
Vai arrancar batatas ao dia fora, tal como foi ontem e amanhã outra vez, talvez, para outro "patrão".
Leva um sorriso e uma cantiga para ajudarem a ser mais leve...
Mas irá sempre com a mesma alegria de quem não conhece outra vida que não aquela que a sorte lhe dita.
Será desdita?


 




Se o tempo se medisse em espessura e esta fosse uma página de um livro aberto ao calhas, seria a lombada de um romance onde caberiam as histórias de cada um dos personagens que ali estão, junto ao canteiro do "polícia", naquela tarde de verão de um ano perdido do século passado, ainda tão cheios de sonhos e ingenuidade...
Os mesmos que se haveriam de perder e encontrar, de se cruzar e até acompanhar em vários outros capítulos ao longo das suas vidas. Tendo, contudo, histórias tão diferentes mas as mesmas raízes na terra onde nasceram os seus e para onde se encaminham sempre, em alguma altura. Mais cedo ou mais tarde!

Cleo Dias 



 



A minha mãe a fritar os carapaus e a mexer o arroz de colorau com uma colher de pau redonda, oferecida numa ocasião pelo Urbano, que era colhereiro no Covão debaixo de um pinheiro grande, sentado em frente ao cepo, a batucar o dia todo de ferramenta na mão. A interromper apenas para vir comer o "jantar", porque a mulher a chamá-lo da varanda quando as horas a chegarem-se.
De modo que, a gente por ali à espera do almoço e nisto a prima Edite a chamar por uma de nós no telhado das traseiras. Ás vezes por causa de nos fazer uma pergunta, outras porque a querer dar-nos qualquer coisita num prato e eu a ir pelo terraço e a saltar o muro na ponta para o telhado da casa de lá, e a dar uns passitos devagar porque o telhado a abanar todo. E ao alcançar o prato estendido na mão dela e tapado com um guardanapo, a voltar pelo mesmo caminho.
Um mimo qualquer, porque ela a saber-nos gulosas...

 


a casa da minha avó, para onde costumava ir quando pequena e adorava, havia na salita, para além da mesa com as quatro cadeiras cheias de caruncho e enegrecidas pelo fumo da fogueira que enchia a casa toda sempre que os gravetos ainda verdes ou a lenha molhada, havia também uma cómoda com gavetas empenadas que eu me fartava de puxar nos puxadores redondos também de madeira, mas elas a não quererem abrir-se. E, portanto, como a minha força não permitia mais do que uma pequena fresta de um dos lados apesar dos muitos safanões investidos, porque o outro pregado e sem se mover um milímetro! Era pois, por ali que eu espreitava lá para dentro e pescava um ou outro tesouro que ela ali tinha escondido, na escuridão daquele lugar onde coisas esquecidas e difíceis de encontrar... Com a minha pequenita mão lá metida mas sem a poder mover, era com a ponta dos dedos contra a madeira e fazendo com que deslizassem até lhes ver uma ponta e depois a puxar para fora.
Algumas, eram as cartas que o meu pai lhe enviara dez anos antes, de quando trabalhava e morava em Lisboa. Havia também alguns postais já quase sem tinta alguma em virtude do desgaste do tempo, mas eram mais as cartas. Amarelecidas, ainda com selos e carimbos por cima. As letras, desenhadas, não as sabia ler ainda mas a minha avó, analfabeta, já as tinha dado a ler a quem sabia e até pedido à mesma pessoa para lhes responder, cada uma por sua vez, muito antes de as guardar naquele jazigo empenado. Notícias da época a darem conta das preocupações de então.
Uma criança que existia e que não aparecia para ver a avó apesar desta cheia de saudades... Uma ovelha que estaria doente e a não comer nada, E até as oliveiras a prometerem pouco azeite naquele ano... Coisas banais, portanto, talvez até de somenos importância só para encherem o papel. Sei porque as li mais tarde, quando já havia aprendido a juntar as letras com a professora Fernanda na escola da Benfeita.

 


Dava-se o caso de, naquele ano a minha amiga e colega de escola me ter convidado para ir à festa da terra dela, que seria por ali, algures pelo mês de Agosto, como o são quase todas as festas das aldeias das redondezas, da nossa bela Serra do Açôr.
Ora, dava-se o caso de não poder ir sozinha, visto que nem camioneta da carreira, nem boleia nenhuma a partir da minha terra e para aquelas bandas. De modo que, o convite foi mesmo para todos. Ou seja, eu mais a minha irmã encostadas a um dos lados da carroçaria e a minha mãe ao outro para contrabalançar, não fosse o desgraçado guinar para um dos lados e espetar-se contra a valeta. Ou ainda, pior do que isso, entornar-se por ali abaixo do lado das barreiras!
De maneira que, o meu pai firme e hirto, agarrado ao guiador do triciclo, qual cavaleiro convicto à sela do animal.
Nas ladeiras, o bicho queixava-se tanto que ele resolveu levar-nos à formiga... ora eu e a minha irmã, ora a minha mãe sozinha.
Chegados lá, seriam umas dez da manhã e a missa ainda por começar. Havia ainda a procissão pelas ruas intermináveis, com a banda da Aldeia das Dez a marcar o compasso e, só após a missa acabar, a venda das ofertas que nesse ano seriam mais de meia dúzia. Tudo isso ali no meio do largo junto a um chafariz, leiloando e oferecendo de novo para voltar ao leilão, várias vezes, fazendo render o artigo até mais não. Meio dia e o leilão ao rubro ainda... A minha irmã, criança ainda, a queixar-se de um rato no estomago e o meu pai, sem ter levado bolacha nenhuma na algibeira, a ter de lhe ir comprar um pacote de batatas fritas à taberna que por lá estava aberta naquele dia de festa...
Chegada, finalmente, a hora do almoço, seriam para aí umas boas três horas da tarde e a primeira coisa a chegar à mesa para acalmar a galga, foi uma travessa de feijão encarnado com toucinho cozido pois então, querem lá coisa melhor para matar a fome?! Pois bem, o mestre da música não se armou em esquisito e era vê-lo a comer com satisfação o petisco que ali tinha á mão. Seguiu-se o cozido como deve ser, com tudo a que se tem direito, até chouriça de tripa cagueira e morcela de arroz. E só depois disso tudo é que apareceu a chanfana! Mas essa, a sobrar quase toda...
Vieram ainda travessas de arroz doce e tachos de tigelada, como em qualquer mesa que se preze em dia de festa, de uma casa nas aldeias da Serra do Açôr.
Foto do blog "O Açôr", tirada nos anos 50 na aldeia da minha colega e amiga de então, Sorgaçosa. 😜


 

Quem haveria de dizer naquela altura, quando o meu pai comprou no mercado de Côja um limoeiro e o foi plantar na calhada da "poça da figueira", no Sandinho, por ser mais soalheira e não lhe faltar água porque a poça ali mesmo ao lado e mesmo que se deixasse de cultivar lá se haveria de ir deitar uma pinga de água ao limoeiro. Mas quem lá ía amiúde a deixar de ir e a calhada a ficar de relva como as outras quase todas em volta, mesmo a do Ti Zé Ramos das Luadas que noutro tempo por ali andava mais a mulher, ora a tratar das ovelhas que tinha no curral do lado de cima do caminho ora a cavar e destorroar a terra do chão grande e das calhadas mais pequenas ao pé. Parecia uma família dado a quantidade de gente que ali costumava passar grande parte do tempo das suas vidas em virtude de ser preciso amanhar os bocaditos de terra que lhes enchiam a casa por alturas de recolher o que a mesma dava. Batatas, milho, feijões, erva para o gado, azeitona, maçãs e laranjas, figos tão bons!... Aos poucos e tirando o cuidado das videiras por causa dos cachitos das uvas doces e madurinhas, tão valiosas para dar grau ao vinho que ainda se teimava em fazer, já poucos se encontravam quando se lá ía. Á porta dos currais já não se parava a dar a salvação a ninguém porque os currais já sem ovelhas nenhumas. Na Benfeita, de vez em quando o sino a tocar badaladas tristes ao entardecer e nós a sabermos logo que havia morrido mais alguém. E assim foram deixando de aparecer naquele "Sandinho" e nos outros "Sandinhos" das outras aldeias. Certa ocasião eu a chegar com um carrego de limões às costas e a encontrar o Ti Lopes já ali no caminho da "levada da fonte" e ele a ficar todo contente por me ver, porque, creio eu, a lembrar-se de tempos lá mais recuados, em que, para além de mim, ali se encontrava gente com fartura de cestas à cabeça ou sacos de sarapilheira pelas costas e sacholas ou ancinhos e enxadas ao ombro a irem ou a virem de qualquer lado e a demorarem-se um pouco em breves e reconfortantes convívios ocasionais por conta das novidades ou das dores de cada qual. Despedindo-se com um "até logo" e lá seguindo cada um nos seus cuidados. E naquele dia só nós os dois ali a conversarmos um bocadinho. Ele a lembrar-se de quando podia bem ainda e tratavam da fazenda que tinham na "Moenda", onde, tirando o ser muito mais longe do povo que o "Sandinho", não era muito diferente no resto. E ainda do tempo em que a ganhar o sustento da família na dureza das "Minas da Panasqueira"... Dizia eu, quem haveria de dizer que passados mais de quarenta anos e apesar do fogo que tudo lambeu, o limoeiro a resistir e por lá continuar a dar limões grandes e amarelinhos mas tão difíceis de apanhar porque o sítio a ficar mais longe a cada ano e já nem caminhos nem pernas para lá irem ver deles. 

  Cleo 

PS - Na foto o Ti Lopes ao pé da Ti Conceição, numa suave tarde de Abril do ano de 2014. Estas são duas das "minhas" pessoas, por quem tenho imensa estima. O Ti Lopes faleceu ontem e esta é a minha singela homenagem em sua memória.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Importante

Tenho para mim que uma das coisas mais importantes que me aconteceram na vida foi ter tido a fortuna de poder partilhar com a minha avó momentos irrepetíveis, recheados de pequenos nadas e cobertos de uma fina camada de ternura, que ainda hoje lhe sinto o doce do paladar quando migalhas a roçarem o palato da alma... Aquela figura alegre, que cantava para enxotar a solidão e rezava sempre um terço de fé à noite. Quando ainda andava direita, empoleirada nas tamancas de pau, dois palmos de saia abaixo do joelho com avental por cima e blusa que ela apertava num clic de molas entre polegares. Na cabeça um lenço atado atrás a proteger o carrapito que segurava com ganchos de arame e uma travessa enterrada no cabelo. Por vezes penteava-se ao sol comigo ao pé de si a pedir-lhe que me contasse histórias. Outras vezes a dar uns pontos nalguma coisita descosida ou algum remendo novo que se precisasse e pedia-me que lhe enfiasse a agulha porque os seus olhos já não deixavam e eu toda contente a molhar a ponta da linha de saliva e a encostar a agulha ao pé dos olhos e aquilo afinal a ser tão fácil de enfiar. Subíamos para as lajes do telhado do pátio e ali ficávamos até o sol fugir. Se de inverno, o lenço atado ao queixo e um xaile ou uma capucha a completar a indumentária de cor escura, penso que por causa do luto. Uma lasca de memória a trazer-me o instante de um dia de primavera ensolarado e ela a conversar com alguém que não me recordo quem, com a mão direita a servir de pala em virtude do brilho da luz a fulminar-lhe o azul do fundo do mar dos olhos que se lhe arrasavam de água salgada. E nisto ela a apalpar o bolso do avental e a desdobrar o lenço para enxugar os olhos maculados. Coisas destas, assim importantes, a sobreporem-se a todas as outras e a fazerem a diferença toda entre o que é ou não importante na nossa vida a partir de uma certa idade. Porque, tenho para mim que aquela criança que ali está ao pé da avó no telhado de lajes ao sol, ainda é bem capaz de a seguir ir com ela até ao bordo da fogueira, comer o caldo das couves a aquecer os pés e a alma de agora.

Cleo