sábado, 21 de setembro de 2019

Tirando-se dos seus vagares




Tirando-se dos seus vagares, Silvéria dá um saltito à mercearia, por causa de umas coisitas a fazerem-lhe falta lá em casa. De maneira que, um cartuxozito de papel pardo, com meio kilo de açúcar amarelo tirado da tulha empedernida... e outro de duzentas e cinquenta de café de cevada porque as sopas de pão migado logo de manhã por via de quebrar o jejum, um bacalhauzito cortado em postas miúdas na guilhotina ensebada e devidamente embrulhado e atado com um pedacito de cordel que corta do novelo em cima do balcão. Leva ainda, um litro de petróleo para o candeeiro de torcida, para alumiar na ceia, visto que a electricidade ainda por pôr por causa de ser cara.... De modo que, desdobra a nota de cem escudos que tirou do bolso do avental e estendeu-a ao Sr. Adelino, que, de lápis em riste vindo de trás da orelha, faz a conta num pedacito de papel de embrulho, somando as parcelas. Guarda as moedazitas do troco no bolso do avental com uma das mãos e pega no saquito das compras com a outra e lá segue a caminhar pela rua acima, não sem antes se despedir com um "Até logo", como de habitual. Mas isto, já foi há muito tempo...

 Cleo

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Andava sempre por ali, a fazer qualquer coisa.


Andava sempre por ali, a fazer qualquer coisa. Costumava falar sozinha num monólogo cheio de queixumes para si mesma, visto que mais ninguém ao pé de si para os ouvir. E eu, uma miúda que nada percebia da vida ainda, nem das desventuras de quem pouco ou nada tinha e para ali ter sido trazida, quando, ainda na força da vida. E por ali queimara toda a sua juventude, carregando aos ombros e à cabeça, todos os molhos e todas as cestas cheias de cúmulo, de todos os anos arduamente infinitos. Fossem eles molhos de mato, de lenha, de caruma, de fetos para refescar o curral das ovelhas em dias de calor, de carquejas para chamuscar o porco aquando da matança, ou de estrume arrancado ao poder da força dos braços e do ancinho de dentes compridos, ainda fumegante, para fertilizar a terra às vésperas da sementeira... E cestas de terra aquando das esbeiras onde terra se carregava do fundo para o cimo à cabeça das mulheres, porque se não, a cava impossível derivado ao declive das terras. Cestas de uvas aquando da vindima, num frenezim de pressa, porque tantos corrimões e latadas carregadinhos de cachos. Cestas de espigas de milho maduro, carregado de onde fosse preciso, porque milho semeado em todo o lado... Cestas de batatas aquando do tempo de as arrancar. Cestas de abóboras, de laranjas, de maçãs, de abrunhos... Cestas de tudo e mais alguma coisa que houvesse e fosse preciso carregar! Mas o tempo passara. E agora, já só uma sombra daquilo que fora que continuava ainda ali, a servir aquela família abastada. De maneira que, para mim, era só a Ti Ana a falar consigo mesma(e eu a arremedá-la baixinho, talvez por lhe achar graça), quando por ali a passar no caminho rente ao quintal onde ela a ceifar erva para dar ao gado e a achar-se sozinha. E, de facto, se calhar sempre terá sido uma alma só, visto que nem família nem nada e a vida a chegar-se-lhe ao fim, devagarinho.

Cleo

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

E varria o sobrado com a sua vassoura de giestas




E varria o sobrado, com a sua vassoura de giestas trazidas da cumeada, visto não possuir mais nenhuma em virtude de o dinheiro da venda da lã das ovelhas não dar para muito mais e os cobertores, serem, afinal, muito mais precisos do que uma vassoura chique de piassaba. As tábuas carunchosas também não mereciam mais... Na pilheira, uma panela de três pernas fumegava vapores de caldo cujo aroma, inesquecível, se espalhava pelo resto da casa. Na trava do tecto, um cesto de verga escondia o quarteirão das sardinhas secas, que, a par de um bacalhauzito miúdo, costumavam durar um mês inteiro. "Reza Florindo"(havia certas regras mesmo na casa dos pobres) - dizia o pai para um deles que devido ao cansaço por aquela hora, fingia que rezava de olhos fechados. Mas, ainda assim, não deixava de se desculpar ao mesmo tempo que arranhava na cabeça - "Meu pai, os piolhos não querem estar calados"!!! Eram sete à mesa e a malga das batatas era apenas uma. Cozidas com a pele, para poupar nos desperdícios, está claro. Não se costumava falar muito na hora da refeição, pois já dizia o ditado:"ovelha que berra é bocada que perde".

 Cleo

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

E da sementeira brotaram pequenas folhas verdes





E da sementeira brotaram pequenas folhas verdes, que, ao poder de muito cuidado e dedicação, desde o aralar, o sachar de inúmeras vezes, o empalhar e assentar inaugurando aquela que seria a primeira de muitas regas, até se medirem os alqueires antes de se arrecadar nas arcas, tantos meses de trabalho, haveriam de trazer suadelas, canseiras e ralações!!

E eis que as pequeninas folhas cresceram e se fizeram adultas. Desbandeiraram-se e carregaram-se as bandeiras às costas até à eira, onde se estenderam ao sol. Arrecadou-se a palha na casita de xisto, que, muito antes de nós, desconhecidos antigos ergueram onde estas faziam falta, para que lhes servissem de abrigo. E assim se mantiveram até que o abandono e os fogos as destruíram, levando consigo toda a história da sua existência... 

Depenaram-se as caneiras, fizeram-se as malharuscas que se prenderam ao canoilo, junto à espiga nua. Daí a uns dias haveriam de se vir buscar e levar para junto das bandeiras já secas, ao enxuto do palheiro. Seria o mantimento dos dias de inverno em que o temporal não daria tréguas...! Depois, finalmente, recolheram-se as espigas maduras que se haveriam de descamisar ao serão. 

Amanhã iremos à debulha.. 

Cleo