quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Andava sempre por ali, a fazer qualquer coisa.


Andava sempre por ali, a fazer qualquer coisa. Costumava falar sozinha num monólogo cheio de queixumes para si mesma, visto que mais ninguém ao pé de si para os ouvir. E eu, uma miúda que nada percebia da vida ainda, nem das desventuras de quem pouco ou nada tinha e para ali ter sido trazida, quando, ainda na força da vida. E por ali queimara toda a sua juventude, carregando aos ombros e à cabeça, todos os molhos e todas as cestas cheias de cúmulo, de todos os anos arduamente infinitos. Fossem eles molhos de mato, de lenha, de caruma, de fetos para refescar o curral das ovelhas em dias de calor, de carquejas para chamuscar o porco aquando da matança, ou de estrume arrancado ao poder da força dos braços e do ancinho de dentes compridos, ainda fumegante, para fertilizar a terra às vésperas da sementeira... E cestas de terra aquando das esbeiras onde terra se carregava do fundo para o cimo à cabeça das mulheres, porque se não, a cava impossível derivado ao declive das terras. Cestas de uvas aquando da vindima, num frenezim de pressa, porque tantos corrimões e latadas carregadinhos de cachos. Cestas de espigas de milho maduro, carregado de onde fosse preciso, porque milho semeado em todo o lado... Cestas de batatas aquando do tempo de as arrancar. Cestas de abóboras, de laranjas, de maçãs, de abrunhos... Cestas de tudo e mais alguma coisa que houvesse e fosse preciso carregar! Mas o tempo passara. E agora, já só uma sombra daquilo que fora que continuava ainda ali, a servir aquela família abastada. De maneira que, para mim, era só a Ti Ana a falar consigo mesma(e eu a arremedá-la baixinho, talvez por lhe achar graça), quando por ali a passar no caminho rente ao quintal onde ela a ceifar erva para dar ao gado e a achar-se sozinha. E, de facto, se calhar sempre terá sido uma alma só, visto que nem família nem nada e a vida a chegar-se-lhe ao fim, devagarinho.

Cleo

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