quarta-feira, 19 de abril de 2023

 


Na casa da minha avó, para onde costumava ir quando pequena e adorava, havia na salita, para além da mesa com as quatro cadeiras cheias de caruncho e enegrecidas pelo fumo da fogueira que enchia a casa toda sempre que os gravetos ainda verdes ou a lenha molhada, havia também uma cómoda com gavetas empenadas que eu me fartava de puxar nos puxadores redondos também de madeira, mas elas a não quererem abrir-se. E, portanto, como a minha força não permitia mais do que uma pequena fresta de um dos lados apesar dos muitos safanões investidos, porque o outro pregado e sem se mover um milímetro! Era pois, por ali que eu espreitava lá para dentro e pescava um ou outro tesouro que ela ali tinha escondido, na escuridão daquele lugar onde coisas esquecidas e difíceis de encontrar... Com a minha pequenita mão lá metida mas sem a poder mover, era com a ponta dos dedos contra a madeira e fazendo com que deslizassem até lhes ver uma ponta e depois a puxar para fora.

Algumas, eram as cartas que o meu pai lhe enviara dez anos antes, de quando trabalhava e morava em Lisboa. Amarelecidas, ainda com selos e carimbos por cima. As letras, desenhadas, não as sabia ler ainda mas a minha avó, analfabeta, já as tinha dado a ler a quem sabia e até pedido à mesma pessoa para lhes responder, cada uma por sua vez, muito antes de as guardar naquele jazigo empenado. Notícias da época a darem conta das preocupações de então.

Uma criança que existia e que não aparecia para ver a avó apesar desta cheia de saudades... Uma ovelha que estaria doente e a não comer nada, E até as oliveiras a prometerem pouco azeite naquele ano... Coisas banais, portanto, talvez até de somenos importância só para encherem o papel. Sei porque as li mais tarde, quando já havia aprendido a juntar as letras com a professora Fernanda na escola da Benfeita.

Cleo

quinta-feira, 6 de abril de 2023



Se fechar os olhos por momentos consigo voltar lá. E volto áquele tempo em que o tempo ainda não contava para nada que fosse mais importante do que a hora em que davam os desenhos animados na televisão que era e foi a preto e branco e que por aquelas alturas estava em cima da cómoda do quarto deles e que eu costumava ver sentada aos pés da cama. Isto por causa de ser curta de vista e não conseguir ler as legendas sem ser ao perto e que estava sempre a ouvir que era um vício...
E lá está a minha mãe na "casa de lá" (assim se chamava porque embora fosse de paredes meias com a de cá, em tempos nem porta por dentro tinha e era preciso ir pelo lado de fora o que era uma chatice se calhasse estar a chover e a ser preciso ir à adega encher a garrafita do vinho pró almoço ou a ter de passar pelo pátio para se entrar na parte de cima. De maneira que, já muito mais tarde, o quarto da minha avó a deixar de existir e ali se fazer a lareira e, claro, se terem mudado para lá os sofás da sala) em dia de se cozer a broa, a peneirar a farinha de milho com a tampa da arca aberta, numa rapidez de solavancos curtos, para lá e para cá, enquanto uma chuva de farinha a cair no castanho da  gamela de amassar a broa. E nesse tempo o forno já construído no lugar onde antes tinha sido a retrete e da qual ainda me lembro tão bem porque numa dor de barriga a ter de me sentar naquele assustador buraco redondo ao qual se retirava uma rodela de madeira que o cobria de dignidade.


 

quarta-feira, 5 de abril de 2023


Por alturas da Páscoa para além das coisitas do costume que se traziam da mercearia do Ti Adelino ali à "poça" ou da de lá da rua do fundo, a do Ti Cruz, uma massita, um cartuxozito com duzentas e cinquenta gramas de café de cevada mais outro igual de açúcar amarelo(embolaricado), uma ou duas caixitas de fósforos para acender o lume, meio litro de petróleo para prevenir o candeeiro porque a electricidade a não se aguentar em noites de tempestade e, por vezes, a parecer inverno e a gente já na Páscoa, vinha ainda uma barra de sabão amarelo porque a não tardar nada e a ser Domingo de Páscoa. E, como é sabido, no Domingo de Páscoa a ter de se abrir a porta ao padre e a toda aquela comitiva que se fazia anunciar com uma sineta. E esta a tocar cada vez mais perto à medida que iam entrando e saindo das casas e se iam aproximando da nossa, em virtude da cruz do Senhor a carecer de ser beijada por toda a gente, bem como as casas a necessitarem de serem benzidas visto que todas naquele dia num brinco... 
Para além, é claro, da oferta do folar ao padre em cima da toalhita de renda na mesa, ao pé da jarrinha de crisântemos e hortenses, porque assim tudo a parecer tão bem! 
De modo que, uma nota de cem(ou seria de quinhentos?) dentro de um pires, um queijito de ovelha (que era de imediato arrecadado no cesto trazido para o efeito) e, uns quantos cálices junto da garrafa de vidro trabalhado e com tampa igualmente de vidro, que continha aguardente no interior ou que também poderia ser licor de ginja, que se consumiam na hora acabando com um "Ah!..." de satisfação no fim.
Portanto, antes disto tudo ainda era preciso lavar a casa como devia ser e daí o sabão amarelo a ser tão precioso, porque mais nada a deixar o soalho amarelinho como ele. 
O sobrado de tábuas corridas, no caso de estar encerado, a ter de se esfregar todo primeiro com o esfregão de arame grosso e só depois a passar-lhe o pano encharcado e a seguir o sabão, a ensaboar em círculos com a escova de piassaba e a força dos braços e outra vez o pano encharcado a fazer desaparecer o sujo e a deixar um cheirinho a lavado por toda a casa. Quartos, sala, corredor e escadas. Tudo de joelhos no chão como que a cumprir uma penitência. Depois era só voltar a espalhar cera daquela que vinha em pacotes cor de laranja, esperar que secasse para lhe dar o lustro e, tudo outra vez numa penitência de joelhos doridos... Mas, em certos casos em que não havia qualquer torneira em casa, ainda a ser preciso ir buscar a água primeiro, em bilhas de barro ou cântaras de zinco, que, mais tarde, já eram só cântaros azuis de plástico, muito mais leves de trazer à cabeça empoleirados nas rodilhas das mulheres.

Cleo


 

segunda-feira, 3 de abril de 2023


Tudo servia para enfeitar o ramo de loureiro que a missa do Domingo de
Ramos pedia. As camélias encarnadas, cuidadosamente presas, com um fio de atar chouriças por entre as folhas. As serpentinas coloridas que sobravam do carnaval, enroladas em toda a volta e as tangerinas penduradas aqui e
ali, faziam-nos brilhar os olhos de alegria.
Por todo o caminho, pinhal abaixo, até á Benfeita, onde, no adro da igreja, já outros da terra que abalavam primeiro e de todas as outras terras da freguesia, também eles, inchados de orgulho e com os olhos a brilhar de tanta emoção pela beleza da sua obra. Seguravam com ambas as mãos, o mais aprumado que
conseguiam, o seu maravilhoso ramo.
Havia ainda aqueles, que, movidos pelo entusiasmo, gostavam de dar nas vistas e elevavam ao exagero o símbolo da missa do dia (que era também a única a que assistiam durante o ano) De modo que, só dobrando a ponta do loureiro inteiro que exibiam, o conseguiriam enfiar dentro da igreja...! O padre, claro, não achava piada nenhuma.🤩🤣😝