sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Por vezes, temos urgência de qualquer coisa


Por vezes, temos urgência de qualquer coisa que nem sabemos bem o quê...! Algo sentimental que nos leva a viajar para dentro de nós mesmos, procurando em cada rua, em cada esquina das memórias, nos resquícios da existência queimada pelo tempo. Evocando lugares e pessoas que nos acordam sentimentos adormecidos e nos permitem reviver instantes impossíveis de descrever. Porque só nós os vemos como vemos e como os queremos ver. Os outros não os enxergam e mesmo que enxergassem não quereriam saber. É uma coisa muito particular. Intima. Nossa! E torna-mo-nos tão felizes ao tropeçar em pequenos nadas que nos surgem de repente, sem o esperarmos. Momentos cheios de ternura que ficaram gravados, e que, nos é permitido reviver de novo, enchendo-nos a alma de uma indizível felicidade. E pode ser só um gesto, uma expressão, uma lembrança de uma qualquer frase dita num determinado contexto e sítio específico. Um sorriso ou a lembrança de um mero afago de mão, num momento frágil (lembro-me do conforto do sentir, das mãos da minha mãe a apertarem-me os pés gelados até os aquecer). Ou um gesto carinhoso de dar uma folha de couve a comer a uma ovelha ou cabrita e ficar ali a vê-la a deliciar-se a roê-la. Ou o prazer que me dava o ver do esgravatar das galinhas, esfuziantes de contentamento, quando as soltava da capoeira por um pedacito de tempo, ao entardecer das tardes de verão. Pode ser tanta coisa simples a emergir da escuridão do nosso subconsciente, no meio desta complexidade toda de sermos singulares, simples e mortais humanos. 

Cleo

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Naquele tempo ía-se a pé pelos carreiros abaixo



Naquele tempo ía-se a pé pelos carreiros abaixo até à Benfeita, tanto nós, os do Pai das Donas, como os das Luadas, os nossos vizinhos mais próximos e residentes neste monte do lado de cá. Porque tanto os dos Pardieiros como os do Sardal e do Enxudro, tinham a sua própria escola nos Pardieiros, onde, certa ocasião, a nossa professora nos chegou a levar no seu "Mini", porque ela a dar também ali aulas em substituição da professora de lá que estaria doente. De maneira que lá fomos uns cinco ou seis, encafuados no automóvel porque o exame da quarta classe dali a pouco tempo e nós a carecermos de mais tempo e sabedoria... . Depois subia-se a ladeira toda até ao cimo de tudo a caminho da escola que estava sentada no alto do outeiro, virada de frente para o Pai das Donas. E à tarde, quando a escola acabava, havia que fazer outra vez, todo aquele caminho de regresso a casa, no sentido inverso. O que nos levava algumas horas em virtude de, para não nos custar tanto, irmos inventando jogos e brincadeiras ao longo da encosta de pinhal e castanheiros, que o carreiro atravessava, por todo aquele vale acima.

Era também obrigatório o uso da bata branca na escola primária. De maneira que, se por algum acaso algum de nós se esquecesse de a levar junto com os cadernos e o livro, o lápis , a borracha e a afiadeira, mais a caneta de tinta permanente que era outro objecto de uso obrigatório, teria de voltar a casa por via de a ir buscar para que não mais houvessem esquecimentos! Aconteceu, que me lembre, uma ou duas vezes a um desgraçado que só tinha uma única bata e que a mãe não tivera tempo de a lavar ou não teria enxugado a tempo, já me não recordo bem...
As carteiras eram de madeira maciça, ligeiramente inclinadas e com o assento incorporado. No topo tinham uma cavidade arredondada onde se pousavam os lápis de carvão nº2 e as canetas de tinta permanente, as únicas permitidas na escrita do ditado. Havia ainda um tinteiro redondo de louça branca, onde os nossos pais molharam os seus aparos aquando da escrita dos seus ditados.
Na parede, ao lado do quadro preto, um mapa de Portugal em tamanho grande e ainda um crucifixo. Na gaveta, ao lado do livro de presenças, uma régua bem grossa impunha o respeito de outrora. Um armário envidraçado com alguns materiais arrumados e uma salamandra ao canto (que nos valia um cavalo na guerra em dias de Inverno, visto que só do caminho, uns pintos encharcados a tremerem de frio...) compunham o restante recheio da sala onde se aprendiam as primeiras letras e números que nos haveriam de ajudar a ser gente, pelo resto da vida fora. Para alguns, seriam os únicos conhecimentos adquiridos numa escola.

Voltando ainda ao caminho e já na Benfeita, passando a Fonte das Moscas e a estreita ponte sem guardas e que certa vez tive de atravessar de gatas, aterrada de medo, por via da ribeira ir cheia de água castanha em virtude de uma valente trovoada que lhe fez subir o caudal. Passava-se ao Areal em direcção à Praça que era onde se começava a subir a impiedosa ladeira que nos levava à escola. De maneira que, passava-se ali à porta dos irmãos sapateiros, sempre na sua faina a coser cabedal e a colar palmilhas, a martelar e a remendar meias-solas de botas que chegavam a ir lá parar por mais de duas ou três vezes antes de ficarem sem préstimo nenhum. O cheiro a cabedal espalhava-se pela rua e só na curva da casa de outros irmãos, também dois, é que deixava de se sentir. Chamavam-lhe "malucos" por não serem muito sociáveis e passarem a vida em casa, onde, por vezes, se assomavam a uma das janelas altas a ver quem passava na calçada lá em baixo. Em tempos viviam com a mãe, mas desde que ela morrera que passaram a viver sozinhos. Pouco mais se sabia daquelas estranhas criaturas.
Dali até ao "Quintal" era um saltinho. Um carreirito ali à direita, entre a casa dos irmãos malucos e o casarão do Dr. Urbano, por onde, de vez em quando e sempre no regresso da escola, vinhamos por lá por via de ver quem por ali estava a dar à língua. E uma mão cheia de gente a animar o "Quintal" com as suas conversas cheias de entusiasmo e as gargalhadas a encher os rostos de sorrisos e alegria e a esquecerem-se dos cansaços do corpo...
Um pouco mais acima, lá estava o papagaio da D. Ilda a dizer-nos "Olá!" ou então outras coisas menos dignas que a rapaziada lhe costumava ensinar...

Lá mais para cima, outro "fantasma" debruçado na janela de correr, olhava o movimento da canalha que por ali passava àquela hora. Duas ou três vizinhas conversavam entre esquinas e o "Rusga" preparava-se para fazer a sua volta do costume. Uma pasta de madeira na mão, que em certa ocasião encomendara ao meu pai e ele fizera com toda a sua perfeição de minúcias, enchendo-a de compartimentos vários, onde o pincel, o sabão, a navalha, a tesoura, cada um no seu devido lugar. Boina espanhola enterrada na cabeça e lá ía ele a manquejar rua abaixo. Talvez fosse até às Luadas ou aos Pardieiros, à Dreia ou Deflores, onde tinha a clientela de guedelhas grandes à sua espera. Chegado lá, uma cadeira era tudo o que precisava para montar o seu salão. Tanto podia ser num pátio, como numa garagem ou até no meio do largo da terra. Na minha, era na oficina do meu pai, onde cabelos se íam misturando nas aparas da madeira...

Cleo

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

O tempo... Sempre o mesmo tempo


O tempo... Sempre o mesmo tempo de que nos damos conta de já ter passado, quando, nos olhamos ao espelho e lhe descobrimos o diâmetro da espessura. Ou nas rugas que escavaram socalcos na pele do rosto engelhado de uma velha, a debulhar memórias que estende ao sol... O tempo que nos escapa por entre os dedos, porque nos distancia das coisas. Não dos lugares, porque a esses podemos voltar sempre que nos apetecer. Apenas das coisas, porque os lugares, esses, a continuarem lá ainda que mergulhados na imperturbável quietude dos montes. Os mesmos lugares que fervilhavam de vida, porque pessoas mais novas do que nós agora e no entanto mais velhas do que nós a mexerem-se com ferramentas nas mãos e cestos e molhos às costas, frenéticos, e a tagarelarem alegrias e tristezas umas com as outras em lugares que se lá formos hoje, as não encontramos. De maneira que, só o vazio no lugar delas. Mas se ainda nos lembrarmos delas, podemos colocá-las nos seus lugares, e tudo outra vez como era dantes! Tudo isto são coisas insignificantes... Talvez saudades. Sim, são saudades do que o tempo abocanhou e deixou para trás.

 Cleo