terça-feira, 13 de agosto de 2019

No dia seguinte acordei cedíssimo



(continuação)
No dia seguinte acordei cedíssimo. O rebuliço na rua impedia-me de dormir mais. O roncar constante dos motores dos automóveis em fúria de cá para lá e de lá para cá num vaivém interminável, contrastava com o som de um único motor que costumava levar-nos (a mim e à minha irmã) à janela, por mor de averiguar de quem seria que àquela hora (fosse ela a hora que fosse, qualquer uma servia desde que viesse cortar o silêncio sepulcral da rua). Se fosse o padeiro ou o sardinheiro, apitariam logo na curva das aveias anunciando a sua chegada e dando tempo às mulheres que estivessem nas redondezas ou no quintal dos mimos, de irem a casa numa pressa para mor de ir buscar o saco de plástico e o porta-moedas. De modo que esses dois ficavam logo postos de parte. Seriam todos menos esses dois, visto que esses apitavam sempre quando ainda vinham lá ao longe. Se fosse natal ou Agosto, também calhava ser o meu padrinho, a minha madrinha e os filhos, que chegavam de Lisboa e nos alvoraçavam de uma incompreensível euforia como se fossem da nossa própria família e viessem para a nossa casa... Mas não. Não era para a nossa que vinham. Era para a do lado, ali mesmo encostadinha à nossa só que muito maior e mais bonita. Outras vezes eram os do polícia, também nossos vizinhos ali no oiteiro, só que do outro lado da rua, junto à torre do relógio que um dia resolveram deitar abaixo de todo por causa de umas pedras que começaram a cair lá de cima e que eram capazes de acertar em alguém que por ali passasse. Mas dizia eu ali em cima, que acordei cedo naquela manhã por causa do rebuliço da rua. Carros, buzinas, falaças, passos apressados na calçada e pregões que eu nunca tinha ouvido ao vivo, só na voz do meu pai, quando, em conversa com os da terra que por ali paravam à porta da oficina, a caminho de qualquer lado e entravam para trocar dois dedos de conversa; os resolvia imitar trazendo o Bairro da Madragoa inteirinho para dentro da sua oficina, visto que os demais logo lhe respondiam com outros do mesmo género. De maneira que aquilo mais parecia um qualquer pátio de Alfama, onde a conversa animada lhes parecia trazer uma inesperada felicidade. Era uma coisa que se via no brilho dos olhos e no querer dizer apressado de cada um. Levantei-me num estalar de mola e chamei pelo meu pai que a essa hora ainda se passeava nos sonhos. Comemos uma bucha à pressa e lá seguimos para a rua a caminho do tal oftalmologista do hospital dos Capuchos que nos haviam recomendado. 

 Cleo

Cresci no campo




Cresci no campo mas orgulhava-me de ter nascido em Lisboa, na maternidade Alfredo da Costa; que me parecia ser num sítio tão longínquo quanto a remota possibilidade de alguém me meter num automóvel e me levar num passeio a conhecer Lisboa, que, tantas vezes, sonhava em pormenores de ingenuidades infantis. Mas ordenados. Ordenados por sequências de imagens que se geravam e arrumavam na minha jovem mente. Como seria a cidade onde tinha nascido? Era a pergunta que se impunha sempre e a toda a hora que decidia abandonar-me em pensamentos sonhadores. Esta pergunta incomodava-me muito. Em parte, por não conhecer nem um pedacinho só que fosse - a não ser por via daquele livrito que para lá andava "souvenirs de Lisboa" encontrado no fundo de uma encomenda vinda da Ti Isaura que morava na Rua da Achada... Mas a verdade é que eu era demasiado pequena quando pegaram em mim e me trouxeram debaixo do braço, sem a minha autorização. Se me tivessem perguntado se queria ir embora de Lisboa para a província, onde uma casa a cair de velha e, ainda assim, toda ela cheia de velhos também, que nos aguardavam em ânsias de precisão. De certeza que teria dito logo que não!. Mas, dois meses não é quase tempo nenhum; não numa vida humana a contar do princípio. Ainda era demasiado cedo para me lembrar do que quer que fosse quanto mais ter voto na matéria. Acho que por causa disso, acalentava em segredo esse meu desejo de ir passear até à minha terra natal; tinha todo o direito. E todos os anos os via chegar e partir; aos que de lá vinham para as férias grandes que passavam com os avós, mas a mim ninguém me levava nem trazia... para grande desgosto meu, constatava sempre que era ali a minha terra. Era ali que eu pertencia. Um belo dia, deveria ter uns treze anos, com o pretexto de consultar um especialista da vista no Hospital dos Capuchos, lá vim eu com o meu pai, toda contente, até à capital na furgoneta do Sr. Américo Pêras que nos levou a uma rua estreitinha ali para os lados da costa do castelo, onde morava a Ti Isaura, irmã da minha avó. A casa, minúscula, foi grande demais para me aprisionar e quase asfixiar de ansiedade... não via a hora de serem horas de sair para a tal consulta e poder pisar o chão da terra que era a minha. Ficámos ali mesmo na divisão que chamavam de sala. Havia ainda uma divisão com uma pia de despejos atrás de uma cortina presa por um esticador, onde o único objecto que lhe dava a dignidade de cozinha era um pequeno fogão a gaz de dois bicos e onde um frango borbulhava dentro de uma panela. Ao lado, um quadradinho do tamanho de uma caixa de fósforos onde se vislumbrava uma cama que o enchia por completo. O quarto, talvez a única divisão digna do nome que tinha, estava alugado a uma senhora de bem que era também quem pagava a renda da casa toda ao senhorio do prédio. Dormi com o meu pai num cobertor dobrado ao meio, mais duro que um colchão de chumbo. A azáfama dos automóveis na rua até altas horas da madrugada, contrastava com o silêncio a que estava habituada e não me deixavam chegar o sono, de modo que, a noite se alongou como nunca se tinha alongado mais nenhuma noite em toda a minha vida até ali!...
(continua)
Cleo

Chegou a hora de ir buscar os ovos



Chegou a hora de ir buscar os ovos que há meses se andavam a juntar e repousam no escuro da arca, enterrados no milho - dizem que é por ser mais fresco. Meia dúzia será pouco para um tacho pequeno. Mais um ou dois, a olho, não serão demais e a tigelada fica mais amarelinha... uma colher se sopa de açúcar por cada um e um litro de leite mais a pitadinha de sal, são tudo o que é preciso para mais tarde nos deliciar. A rês que o "piriscas" matou, temperada de véspera com os alhos, o louro, o colorau, a pimenta, o sal e o vinho tinto, deu para encher duas caçoilas das grandes. E a massa da broa amassada na gamela, graças ao crescente da semana passada, já está quase lêveda. Deitou-se já o lume ao forno com duas pinhas e foi-se-lhe atirando uns gravetos para atear o lume. Ao lado, o monte das ganhotas secas aguardava a vez. Ao cabo de uma hora a incandescência das brasas anuncia a prontidão do forno para os receber a todos. Arredou-se então o braseiro e abriu-se caminho às caçoilas da chanfana que foram logo as primeiras. Foi-se tendendo a broa na escudela e, uma a uma, a pá de rabo comprido as foi arrumando com minúcias de calceteiro, lado a lado, mesmo ao meio. As esmagadas de sardinha e de presunto, mais próximo da porta (hão-de ser as primeiras a tirar já cozidinhas) e por último os tachos da tigelada, do outro lado. Agora é só esperar e ir sentindo o cheiro que se espalha em redor... São capazes de imaginar?


Cleo

Hoje recordo com nostalgia




Hoje recordo com nostalgia certos momentos que me ficaram guardados na lembrança. Como daquela vez em que fomos as duas apanhar a azeitona de um punhado de oliveiras perdidas numa quelhada da Cilhanova, onde já ninguém cultivava nada. Mas ainda ali se voltava todos os anos com o propósito de apanhar o que as árvores abandonadas continuavam a dar, apesar das silvas em seu redor, que era preciso cortar antes de estender os toldos e armar a escada.
Naquele dia tinhas feito um guizado de bacalhau com batatas que levaste para o nosso almoço. Chegada a hora, escolhemos um lugar onde dava o sol mesmo de frente e sentámo-nos a aquecer o corpo por dentro e por fora. 
Sabes mãe, tenho tantas saudades de nós nesse tempo..
.


 


Cleo


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Nunca o conheci em carne e osso


Nunca o conheci em carne e osso mas sempre me habituei a ouvir falar tanto dele, que é como se o tivesse conhecido de facto. Desde a infância que aquela figura vivia connosco lá em casa. E não era apenas nos retratos a preto e branco, dentro do baú pintado de verde e escondido em cima do guarda-fatos. A sua memória era respeitosamente preservada! Tanto em conversas que falavam de estórias de outros tempos e onde ele sempre aparecia, relatando episódios caricatos e que acabavam sempre em valentes e sonoras gargalhadas em todos os que estavam. Por vezes também se sentava connosco à mesa das refeições... Tantas e tantas vezes. Fosse na sua oficina de marcenaria, onde dava corpo a verdadeiras obras de arte com a ajuda das ferramentas manuais que tinha ao seu dispôr na época e com as quais, na ausência de um filho que nunca tivera, ensinou a sua arte ao sobrinho que levara da casa dos pais, para criar na sua casa. E que era também meu pai ... mais tarde, claro. Muito mais tarde! Ou nun qualquer serão de um tempo anterior à televisão e onde o rádio era também um objecto tão raro que só um ou dois sujeitos mais abastados da freguesia, teriam o aparelho nas suas casas; a tocar um instrumento de cordas que tanto poderia ser uma guitarra ou uma viola, como um banjo ou até mesmo um contrabaixo, visto que, todos esses instrumentos, se encontrarem arrumados no armário embutido na parede do quarto mais pequeno, partilhado por mim e pela minha irmã muitos anos mais tarde. Como deveriam ser animados esses serões!... Existem fotografias antigas que o comprovam, mas não passam disso mesmo; memórias desgastadas p' lo tempo e das quais já ninguém vivo para me falar delas. Dizia-me um amigo entretanto também já falecido, mas que era rapaz à época e se recordava muito bem do ti Firmino, que aquele homem era uma criatura muito à frente do seu tempo e com uma inteligência acima da média. Eu acredito. Gostaria de o ter conhecido, de facto!

 Cleo

O tempo, não o de sol ou da chuva, o outro.


O tempo. Não o de sol ou da chuva. O outro... Aquele que se não deixa ver nem apalpar mas que o sabemos, porque nos distancia das coisas onde pessoas mais novas do que nós agora (e no entanto mais velhas do que nós), em lugares que se lá formos hoje as não encontramos. Ou se encontramos alguma ainda, já não a mesma que aquela que nos vem ao pensamento. Esse tempo, será sempre tudo o que me separa do que por vezes me enche o pensamento. Partículas dispersas de coisas insignificantes, restos de momentos que ora aparecem ora se escondem por detrás de outras memórias para depois voltarem noutra ocasião qualquer sem que as espere. Parece que estão ali sempre à mão e no entanto, se me distraio, se as não aponto num pedacito de papel, já só o vazio no lugar delas. Já me tem acontecido precisar de algumas e elas a brincar comigo às escondidas. Mandam-me outras no lugar delas e essas a suceder a mesma coisa. De maneira que, às vezes, costumo adormecer à espera delas com uma rede de caçar borboletas, no redondo da esquina, entre um sonho e um pensamento.

Cleo

Costumava pegar numa corda e numa roçadoira



Costumava pegar numa corda e numa roçadoira bem afiada na hora e abalar para a "eira-cabeça", onde, com as suas já poucas forças, ía roçando o mato que ugava depois a preceito e em vez de um molho grande que noutros tempos lhe não custaria nada a trazer e que todos os dias viamos passar nos caminhos (alguns, autênticas serras de fazer inveja a qualquer um), com duas ou três paveias fazia outros tantos que me pedia para ir buscar daí a uma boa meia hora. E eu, fraquizela como era derivado à tenra idade, a mesma que ainda me não permitia pegar na tal ferramenta de corte, lá vinha toda contente, por me serem leves os molhos que a minha avó me ajudava a equilibrar nos ombros. Primeiro um, depois outro e ainda um terceiro, que ía trazendo à formiga, por via de não ter de lá voltar três vezes... não é que fosse muito longe, mas assim trazia logo tudo de uma vez!

Cleo

Estas são as marcas que ficaram




Estas são as marcas
Que ficaram
Esculpidas no silêncio
Que ecoa
Por estes vales
Onde outrora
A vida germinou
Em flor...

São restos de ontem
Que resistem
Com a dignidade
De quem sobreviveu
Aos tempo

Para que nunca nos esqueçamos
Do suor
Dos que antes
Neste lugar
Empunharam a valentia
Das enxadas
Que hoje jazem na ferrugem
Do abandono...



Cleo

Queres ir comigo às pinhas?


Queres ir comigo às pinhas? - Perguntava-me a prima Alzira, entre meneios de cabeça provocados pelo tique nervoso que lhe atazanava o ente do ser. E continuava, na esperança de me convencer - Vem daí comigo que te faço um burrico com uma guita atada a uma pinha grande. 
E lá ía eu a servir-lhe de companhia pelos pinhais adiante, procurando entre todas as que encontrava no chão de caruma e lhe ajudava a encher a saca, a tal que teria de ser a maior de todas as pinhas e com a qual voltava toda contente, arrastando-a pela guita chão fora, fingindo tratar-se de um brinquedo a sério. 

Cleo