quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Jorge era um rapaz


O Jorge era um rapaz dos seus vinte e tal anos, que, de vez em quando, aparecia sem ser esperado. O que até certo ponto se compreendia, pois tinha sido por ali criado, num casebre ao cabo do oiteiro. Era uma casita de pedra à vista com uma varandazita de madeira apodrecida da chuva e dos anos sem um prego que fosse... A casa, paredes meias com a dos tios, agora vazia em virtude de terem abalado todos para Coimbra e por lá terem ficado agarrados a uma banca repartida entre lavores e quinquilharias, que sempre era melhor do que andar ao mato e á lenha ou a carregar terra à cabeça do fundo para o cimo das quelhadas inclinadas da "peneda" ou a caminhar todos os dias para o "tapadinho", que era preciso mais de uma hora de caminho.
Moravam num quadrado minúsculo de um quarto andar, com umas escadas encaracoladas que chiavam quando a gente a subir por elas acima. Mas, ao mesmo tempo, era a casa mais acolhedora que se possa imaginar visto que nunca deixaram ninguém lá da terra na rua, quando ali apareciam, ao escurecer, a maior parte das vezes por causa de uma consulta no Hospital da Universidade. A um especialista de qualquer coisa que o médico da Casa do Povo lhes tinha passado na credencial. É que às vezes as consultas eram cedo e nem sempre se ajustavam com os horários da camioneta da carreira.
Chegámos a ficar lá algumas vezes, eu e o meu pai, aquando das consultas de oftalmologia que lá em cima, em Celas, para onde íamos ao outro dia de manhã cedo, no troley amarelo. De maneira que, montava-se um divã junto à janela, abria-se o sofá-cama e, por vezes, em alturas de muito aperto, chegava-se a pôr uma criança a dormir com a filha mais velha numa cama que ficava logo atrás da cortina que separava em dois o único quarto que havia. E ela, sempre de sorriso na boca, sem se importar. Em três tempos arranjavam-se ali quantas dormidas fossem precisas e sempre de boa vontade e com bons modos. Que o digam os que lá foram bater à porta, enrascados, por mais de uma vez. Porque uma consulta no hospital no dia a seguir, bem cedo, e a lonjura do caminho mais os horários das carreiras a não ajudarem.
E ainda lhes davam de jantar. Um frango cortado aos pedaços, a fritar na frigideira e um tacho de arroz para acompanhar o conduto. Ou um bacalhauzito cozido com batatas. Ninguém ali ficava sem comer!
Voltando ao Jorge... Sempre que lhe dava na gana, lá vinha ele rua acima(como um íman)apesar de há muitos anos, dali terem ido para a Marinha Grande por causa de um trabalho na fábrica do vidro a proporcionar uma vida melhorzita, havia qualquer coisa que o chamava ao lugar onde nascera e crescera. Além disso, como não costumava dar contas a ninguém, porque a fazer sempre o que bem entendia e quando queria. De maneira que, aparecia por ali, por vezes já noite cerrada a bater-nos à porta. A minha mãe, claro, não o ía deixar na rua. De modo que, tratava logo de lhe fazer umas batatas fritas com qualquer coisa mais que ía buscar à panela das aflições (*) para lhe compôr o estômago. A seguir, tratava-se de lhe arranjar uma cama improvisada num divã que se armava no corredor da casa de lá, a seguir ao quarto da minha avó. E o Jorge por ali ficava, dois ou três dias até se fartar, a matar as saudades das pessoas e da terra que também era a sua. Depois abalava, tal como chegara, mas deixando no ar a certeza de que voltaria, numa outra ocasião qualquer, fosse qual fosse a estação do ano. Bastava lembrar-se e deitar os pés ao caminho. E assim fez até morrer!

(*) - termo usado para designar um pote de barro onde geralmente se conservavam as carnes e os enchidos, mergulhados em azeite.
Cleo

Cresci no campo


Cresci no campo, nunca o escondi de ninguém. Levantei-me com o sol e deitei-me com as estrelas. Trabalhei como gente grande ao lado dos grandes, quando ainda de uma criança não passava. Usei toda a minha força, mas a minha força era afinal tão pouca que quase me levava ao desespero pelo cansaço que de mim se apoderava. Dias intermináveis de trabalhos que nunca chegavam ao fim por via de acudir ao trabalho dos outros, que, por aquelas alturas e atroco de qualquer coisa, me ía bater à porta sem que o pudesse recusar. Esbeirar para a prima Laurinda, acarretar as bandeiras do milho do primo Américo, as batatas da Silvéria ou ajudar na apanha do feijão do primo Jaime, só para dar um pequeno exemplo. Tudo coisas que se não recusavam por conta das obrigações devidas... uma boleia para o médico de Côja, um litro de mel oferecido, uma ajuda na assenta do milho. Tudo se pagava com o troco do trabalho, com esforço e não raras as vezes, com lágrimas também. Ainda há tempos um conhecido me dizia - "Tinha tanta pena de ti, que tu nem sabes... via-te quase sempre debaixo dos molhos e até me chegava a sentir mal por estar ali de férias, cheio de força e nada poder fazer por ti!" - Nesse tempo escondia-me dos veraneantes nem sei bem porquê. Talvez por vergonha, sei lá... mas hoje penso: vergonha de quê? Essa agora, era o que mais faltava!!

 Cleo

Quisera o destino


Quisera o destino que lhe fora reservado logo à nascença, que acabasse os seus últimos anos de vida preso a uma cadeira de rodas.
Quem lhe o disse, muitos anos antes, foi o Dr. Cosme, médico da Casa do Povo de Côja e também um dos mais requisitados no seu consultório particular, mas que ele fez de conta que nunca lhe havia dito nada... Portanto, continuou sempre na sua luta e contrariando as evidências cada vez mais vincadas, com a sua enorme vontade de vencer a doença que lhe corria no sangue livremente como se se tratasse de uma sentença de forca aplicada a um inocente.
Mas de pouco adiantou pois as forças foram-se-lhe esgotando até já não restar nem um único sopro de fôlego que se erguesse dos seus músculos secos como palhas.
Nesse dia chorou lágrimas escondidas de uma vergonha indizível que lhe nascia no mais íntimo e sombrio recanto do sentir.
Enquanto morria por dentro, os seus lábios mexeram-se e deles saiu a frase que não queria ter dito nunca:
"Tragam-me a tal cadeira de rodas que o Dr. Cosme falou daquela vez!" - E disse-o com a voz embargada mas decidida, como se parisse cada uma das palavras num acto doloroso de um parto que lhe havia de trazer um monstro para lhe infernizar o resto dos dias da vida.

A partir dali, não mais voltou pelo seu pé à sua velha oficina deixada de herança por um tio, o mesmo que o levou para sua casa quando este tinha apenas quatro ou cinco anos de vida, criou como filho e lhe ensinou a arte com que haveria de governar a vida.
Essa velha oficina que deixou repleta de histórias escritas com o pó que se soltava da madeira com que ia moldando e dando forma às peças que construía com mestria e o seu próprio suor, emolduradas e pregadas com pregos invisíveis em cada tábua empilhada à espera de ser usada numa cómoda qualquer ou mesmo num psiché fora de moda, que sempre quis fazer lá para casa e até chegou a começar, mas que nunca teve tempo de acabar... e também nas aparas espalhadas pelo chão frio de pedra que a mulher varrera para um canto por lhe atrapalharem os passos sempre que lá ia serrar algum tronco mais comprido para melhor ajeitar na fogueira que os aquecia no inverno rigoroso ou ainda nas teias de aranha sem tempo, empoeiradas e presas aos barrotes do tecto, testemunhas silenciosas de um lutador sem medo ao trabalho que a sua arte lhe oferecia em cada novo desafio a que se propunha. E em cada nova obra acabada, erguia humildemente o seu troféu de vencedor.
E que dizer das ferramentas meticulosamente arrumadas por tamanhos e categorias, nas prateleiras em frente do banco com torno incorporado, que lhe servia de bancada de trabalho e que agora se queixavam do abandono a que estavam confinadas?
E das máquinas ruidosas com que tantas vezes acordava as filhas sem querer, que dormiam a sono solto no andar de cima, no seu quarto que tinha o azar de ficar mesmo por cima da oficina, mas que agora se tinham emudecido sem que o tivessem pedido?
Essas histórias ficaram por lá, espalhadas por toda a parte e são como fantasmas presos no lado de lá daquela porta azul turquesa e que permanece quase sempre fechada.

Sem mais nada para fazer e com o tempo todo que o mundo lhe deu, passou a desfiar e a enrolar em novelo juntamente com a solidão dos dias infinitos, as lembranças que guardara em segredo ao longo de uma vida, numa pequena arca de madeira de castanho que fazia questão de ter sempre ao pé de si, envernizada e talhada pelas suas próprias mãos que empunharam com gosto e determinação, o formão e o martelo da sua obra mais enigmática e até ali escondida dos olhares de todos.
Além de fotografias meio apagadas, páginas de jornais antigos com folhetins do Tin Tin a delirem-se nas dobras e nas pontas, cartas dentro de envelopes ainda com selo e carimbo por cima, escrupulosamente escritos à mão numa caligrafia invejável que só um aparo da época conseguia desenhar, alguns cartões esbatidos pelo tempo, algumas moedas enegrecidas e pouco mais de visível se encontrava no interior daquela arca. Mas, acredito que para além do cheiro a mofo, existia ali muito mais do que aquilo que se via.
Tudo isso se foi com o dono daquele pequeno tesouro. Sete palmos de terra por cima e ficou tudo arrumado sem que ninguém alguma vez soubesse do que ele ali guardava sem se ver e que estava colado a cada uma das coisas em que ele ia pegando, desfiando e enrolando junto com a solidão dos dias...

Cleo

A aldeia quase deserta era



A aldeia quase deserta era agora o lar de todos os dias de quem por ali vivia o ano inteiro. Para os velhos, os dias iam passando devagar, sem pressas, a condizer com a eternidade do tempo que agora um estranho, de comportamento maníaco, visto que se não cansava de verter melancolia nos olhares meio vagos e sorumbáticos daqueles que por pouco mais poderem fazer, se entretinham a desfiar ao sol as lembranças de outros tempos idos. Tempos de vitórias e de derrotas como o são todos os tempos e nas histórias de cada um. Mas acima de tudo, também foram tempos de áureas glórias, bem vividas e cuidadosamente guardadas nas memórias dos que as não esqueceram. Entre tantas coisas, recordavam com veemência e muita saudade, a força que lhes movia o corpo ágil da juventude e que em nada os impedia de galgar os muros dos desafios de então. Agora, derrotados por esse mesmo inelutável e fatal tempo, estendem como podem os cansados e velhos ossos, sobre as pedras caladas da eira onde antes estenderam o cereal e o malharam sob o sol de verões prósperos que lhes traziam a felicidade de um instante, repetido vezes sem conta por uma vida inteira, entretanto reduzida a meras lembranças que cabiam num punhado de palavras com as quais enchiam o que lhes sobrava do pouco do tempo que ainda tinham. À noite, de roda da lareira, contavam histórias verdadeiras entremeadas de fábulas antigas, aos netos, que, por ser natal os visitavam... Os pequenos, deslumbrados, nem pestanejavam por via de não perderem pitada alguma.

Cleo

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Os cabazes e cestas


Os cabazes e cestas já há uns dias que estavam a postos. As tesouras, facas e navalhas bem afiadas aguardavam ao lado destes, o nascer do dia. Mal o sol rompia as pessoas íam chegando de todos os lados para ajudar à vindima na vinha da D. Olinda. Aquela encosta do Vale do Sandinho sempre fora soalheira e em boa hora o seu defunto marido ali havia mandado plantar videiras de boas castas que lhe garantiam o vinho de superior qualidade, daquele de fazer estalos na boca.
Em pouco tempo os cabazes se íam enchendo de uvas gordas e docinhas. Brancas para uns e pretas para outros, porque no fim, vinho branco e vinho tinto, para agradar a todos conforme as ocasiões... Cabía-nos a nós que éramos mais novos e cheios de força, carregar com eles à cabeça ou aos ombros, conforme desse mais jeito, lá desde o fundo da vinha por aquelas escadaria acima até à estrada, que depois já era um caminho melhor até à loja da casa, de maneira que, mais gente a ajudar. 
A esmagadeira, empoleirada no tanque de pedra, aguardava  com impaciências de um ano só. Por via de tanta mão de obra, ao fim da manhã estava tudo despachado. Entretanto, um aroma a guizado a chegar ao nariz anunciando a jardineira do almoço. Uma mesa cheia de gente e alegria, onde, para além da jardineira, também as filhós únicas da prima Olinda, como ninguém mais fazia!...  E o arroz doce com fartura, eram as deliciosas recompensas pelo trabalho oferecido de bom grado. Ah, se havia coisa de que eu gostava, era mesmo do dia da vindima da vinha da D. Olinda!

 Cleo

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Tivera em si


Tivera em si todos os sonhos do mundo. Porém, o mundo que era o seu, não era assim tão grande como a sua inocência o julgara. De modo que, à medida que ia crescendo e cada vez mais sequiosa de mundo, os que de si decidiam a negarem-lhe um lugar na dignidade e também nos retratos onde nunca aparecia ao pé dos irmãos... Portanto, dos ardentes e macios desejos que a pudessem ter assaltado, pouco ou nada colheu. Talvez cardos e repelões! E culpas... E solidões... E dias imensos... E noites de breu, intermináveis... E tudo à mistura. Os anos a amontoarem-se! Envelheceu e definhou sem conhecer o mundo que a ingenuidade lhe prometera na flor da idade. Penosas e frustrantes injustiças estas, que a vida prega. 
Quando viva, costumava andar sempre por ali. Primeiro, ainda a caminhar direita apesar da grossura dos óculos a impedi-la de ver o mundo a longa distância. Um molhito de caruma à cabeça que atirava para o chão à porta do curral onde três ovelhas ruminavam a erva do almoço. Outro molhito de lenha para a fogueira e um saco de pinhas compunham as obrigações que lhe cabiam. Depois, o resto da tarde passava-o de conversa com quem calhasse que por ali aparecesse. Outras vezes, quando não aparecia ninguém, subia a rua até ao oiteiro e ía sentar-se no muro onde acabava sempre por chegar alguém e sentar-se também. E convesas e risos e estórias do "dantes" e novas deste e daquele. Das dores e das idas ao médico. Da ida à feira por via de comprar o cebolo... Da missa por alma de quem os lá tinha, dos afazeres imediatos e das festas quando as havia. Tudo servia para deitar à fogueira da conversa. Quando a fome a dar sinal ou o dia a escurecer, o "até amanhã" do costume e ela a apalpar o chão com os pés cuidadosos, dado que os olhos míopes, e antes que os sapatos de plástico pretos escorregassem e a deitassem ao chão, porque nesse tempo, a calçada de penedos lisos ainda.

Cleo 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Debruçada no peitoril


Debruçada no peitoril
Da janela do tempo
Observo o horizonte
Que se estende à minha frente
Fecho os olhos por instantes
E observo o eterno ontem...

Revisito-me nos lugares distantes
Que me vivem na memória
Intocáveis e serenos
Tal como os deixei

O milheiral verde
Onde tanto labutei
Até ao limite das minhas forças
Que
Por tenras serem
Eram poucas...

Das tantas sementeiras
Batatas serôdias
Feijões mochos
E dos que subiam até ao céu...

Os olivais dispersos
Onde azeitonas geladas
A doerem-me nos dedos
Os corrimões das videiras
Ao fundo das quelhadas

O quintal dos mimos
O pomar sombrio
A adega e o alambique
No culminar da vindima

A eira das malhas do trigo
As casas das debulhas do milho
À luz do candeeiro no alto da trave
Os currais
O cheiro do estrume
A fumegar...

A casa da minha avó
O bordo da fogueira
Onde me sentava e me aquecia
Enquanto comia o caldo das couves
E ouvia histórias antigas
De homens e lobos
Na lonjura dos montes
Eram histórias simples
De meias verdades
De meias fantasias
Mas que tanto me encantavam

Esgravatando na memória
Encontro tantos tesouros
Está tudo lá
Inalterável
Como se o tempo não existisse...

Cleo

Ao Domingo não se trabalhava.



Ao Domingo não se trabalhava. Diziam que era pecado... Por isso só se faziam pequenos trabalhos leves, coisa pouca que não escandalizasse o povo da aldeia, caso contrário haveria de haver falatório pela certa! Por isso, nada de cavar terra nem de roçar mato, se não se quisesse andar na boca do povo há falta de melhor para tema de conversa. Era também um dia sagrado que se distinguia dos outros quando pela volta das onze da manhã, se ouviam as primeiras badaladas do sino da torre da igreja da freguesia a avisar os mais distraídos, que dali a uma hora começava a missa; daí a meia hora voltaria a chamar. Tomava-se o banho semanal obrigatório e quem não tivesse onde o tomar, que pegasse num alguidar e ao menos se lavasse a prestações, vestisse o melhor fato e se pusesse ao caminho. Se fosse pelo atalho e sendo a descer, uns vinte minutos a andar bem deveriam chegar. Para cima é que eram elas... mas talvez se arranjasse alguma boleia, pois que os mais abastados que tinham automóvel também costumavam ir à missa e alguns até eram da irmandade que em dias de festa e de funerais, se alinhavam em duas fileiras e acompanhavam a procissão com a pompa da circunstância. Albertina também costumava ir à missa de Domingo, mas tinha um problema: era preciso calçar sapatos! Os pés dela não gostavam de andar apertados dentro de sapatos, pois que sempre se acharam livres e caminhavam ligeiros pelos carreiros das cabras nem que estivesse geada negra, daquela que emergia da terra no pico do Inverno. Mas ir para a missa descalça não parecia lá muito bem... Então, Albertina fazia o caminho quase todo descalça, até ao cimo das barreiras, de onde já se avistava a igreja e o adro cheio. Um pouco mais abaixo, na fonte das moscas, passava os pés pelo fio da água que corria em bica e, conformada, lá calçava as meias de vidro, porque as de mousse logo se agarravam à pele grossa e compacta dos pés que mais pareciam uma sola e de seguida enfiava a custo os sapatos que lhe faziam gemer os dedos e lancinavam em cada passada que dava a caminho da santa missa. Ainda nem tinha passado da soleira da porta da igreja e já só pensava na hora de voltar a tirar os malditos sapatos que lhe apertavam a alma até suar, asfixiando-a sem a deixar purificar-se como devia. E nem os mexericos que se bichanavam quase em surdina, lhe desviavam a atenção do desconforto que sentia. 

Cleo

Estendo o olhar


Estendo o olhar
pela minha serra
e o que vejo
é tanto
que nem caberia
neste poema
que não escrevo...

Tenho preguiça
Não me apetece!

Vou fingir que estou à lareira
a folhear este álbum
enquanto a chuva me bate nos vidros
da janela

Aquieto-me
nas imagens silenciosas
e entretenho-me
a ouvir os pensamentos
que me levam
por esses montes fora
onde habitam
tantas das minhas memórias...

Cleo

Sobram-me palavras emudecidas


Sobram-me palavras emudecidas pelo assombro do medo, de as mesmas virem a perturbar o silêncio que se abate sob as cinzas do tempo, aquietadas pelas irremediáveis, mas já conformadas ausências. Se houvesse uma ligeira brisa que fosse, que só por um mero acaso entrasse por alguma fresta descuidada, espalhar-se-íam pelo ar todas aquelas cinzas, qual tesouro incalculável sumindo-se em frinchas de obscuridades desconhecidas e impossíveis de alcançar. Tantos lugares vazios no abandono do bordo desta fogueira apagada... Lugares tão cheios de tudo, quando ligado o interruptor das incandescentes e crepitantes memórias e ao mesmo tempo, tão cheios de nada, se, desligado do pensamento e ao sabor do esquecimento. Restos de tocos inanimados que jazem no canto farrusco desta pilheira, ornamentada por tumulares paredes enegrecidas de fumo longínquo. E o frio da pedra, quando for noite, a tornar a noite ainda mais escura lá fora.
Cleo

Lago de grãos de oiro


Lago de grãos de oiro
 Que o suor granjeou 
A terra germinou 
E o sol doirará 
Alguns alqueires 
Ou meios
 Que a quarta 
Arredondará... 

 E tudo 
Trabalho do moiro
 Em cujo rosto Sereno 
Um sorriso 
Se plantará 
Ao ver a arca
 Cheia 
Com todo aquele
 ... "tesoiro"!

"Parece que ainda foi ontem"


"Parece que ainda foi ontem" - diziam os velhos que conversavam à sombra das árvores do jardim improvisado que é como quem diz, ali à porta da taberna das Luadas, a ver se matam o tempo que agora têm de sobra ao contrário de antigamente, que mal lhes chegava para o tanto que a azáfama dos dias lhes consumia. Conversavam ruidosamente sobre memórias que lhes traziam de novo aquela alegria de reviver instantes de outrora. E o "ontem" afinal já com tantos anos!... Mas que importava isso, se era ali, tão presente que estava no agora?! E voltariam a repetir tudo daí a bocado ou no dia seguinte, para os mesmos ou mais alguém que ali passasse ou aparecesse por mero acaso, como se o estivessem a contar de novo. A mesma cena com aquele entusiasmo, como se o estivessem a viver naquele preciso momento. E, por instantes, era como se o "ontem" deixasse de existir e tudo aquilo a acontecer agora e ali mesmo, naquele banco de jardim, nas traseiras do tempo.

Cleo

Morreste-me sem me avisares


Morreste-me sem me avisares. Desconfio até, que nem tu própria o soubeste. Se não, terias-me dito alguma coisa dado que ainda de vésperas tinhamos estado a falar ao telefone. E tu que me dizias sempre tudo, desta vez nem um sinal, nem uma queixa do que quer que fosse. Estavas contente ainda do rescaldo do nosso encontro na semana anterior em que te fomos buscar e te levámos para almoçar fora ao que se seguiu um passeio pelos lugares que tão bem conhecias. Viste rostos familiares e gente amiga que te veio cumprimentar. Até comeste um gelado daqueles que te faziam mal à barriga, mas como era um dia diferente, que importância poderia isso ter, perante o prazer que te deu. Ainda tivemos tempo de comprar um coscorel quentinho, acabadinho de fritar, que até os olhos se te riram de o ver a passar no açúcar com a canela. No ar, ficou a promessa de te levar a casa quando houvesse mais vagar, para poderes ver as tuas coisas com tempo e matares as saudades de tudo como devia ser. Mas antes, ainda haverias de fazer anos e, mais uma vez, te prometemos que te iríamos buscar para passares o dia connosco. Desta vez, com o resto da família que neste dia não foi. Mais, até serias tu a pagar o almoço. Promessas são promessas e são para cumprir...! E assim, com um punhado de promessas a aconchegarem-te a alma, ao final da tarde, voltámos a levar-te ao lar e despedimo-nos como sempre, longe de saber que era afinal a última vez que nos veríamos e aquele abraço, o derradeiro. Ainda que não saibas, todos os dias te vejo, no lugar que me deixaste vazio.

Cleo

E volto ao sítio onde as memórias vivem



E volto ao sítio onde as memórias vivem para além do tempo e do espaço que ocupam no meu pensamento. Antes, costumava ser apenas uma, quando, na verdade, deveriam ser mais porque eles vivos ainda e a desejarem terem-nos por perto mais tempo. Mas a vida... De maneira que, agora vou duas ou três vezes por ano. Mas a casa quieta, calada, vazia... A casa e o quintal, outrora um campo de milho ladeado da horta junto ao muro. As alfaces, os tomates, os pimentos, as ervilhas, as cebolas, os alhos e as cenouras, ocupavam o cimo do terreno onde uma leira de morangos compunham o quadrado dos mimos. E a salsa a espreitar por entre as pedras do muro a dar sabor ao refogado. Ao domingo matava-se um coelho que eu levava dentro dum saco a casa do vizinho, por via da falta de coragem da minha mãe; dois esticões na espinha e nem um pio... esfolava-o atrás da porta, preso por uma pata a um cordel. Depois, a cebolada a cobri-lo no tacho e o aroma a abrir-nos o apetite! O sino da igreja da Benfeita a anunciar o fim da missa e pouco depois o barulho do triciclo do meu pai a queixar-se da ladeira. A opa dobrada no braço e depois cuidadosamente arrumada no cabide de madeira dentro do guarda-fatos, as contas dos gastos na mercearia do Ti Artur do correio, os tostões que não batiam certo... moíam-se os miolos até aparecerem e só depois, finalmente, o almoço. O Rogério empoleirado na bicicleta, também ela a chiar por causa da ladeira. De tarde deitavam-se as cabras e fazia-se renda para aproveitar o tempo. A prima Zézinha fez umas quantas colchas e toalhas de mesa, a minha mãe fazia naperons que tirava das revistas de lavores e eu ainda cheguei a fazer um também, só que nunca percebi porque encolheu do meio para a frente. De maneira que nunca mais fiz mais nenhum. De vez em quando aparecia a Patrocínia (que costumava ser sardinheira mas que também tinha uma retrosaria no andar de baixo da sua casa na Benfeita), com a loja às costas, que montava no largo: umas colchas, uns lençóis, toalhas variadas em jogos e desirmanadas, panos de cozinha, cobertores, tecido para cortinados e vestidos, saias, blusas, aventais, cuecas, meias, collants de vidro e tantas outras tralhas das boas naquela espécie de feira só dela cujas clientes íam aparecendo por força da sua insistência de porta-a-porta. Até parecia mal não se ir lá fazer o jeito de comprar alguma coisinha, quanto mais não fosse, para meter na mala do enxoval da filha ou da neta, onde afinal, ainda cabia tanta coisa e aquilo era artigo do bom!...

 Cleo

domingo, 20 de outubro de 2019

Lembro-me do cheiro a feno acabado de ceifar



Lembro-me do cheiro a feno acabado de ceifar. Paveia a paveia, ugado a preceito por quem tão bem sabia, compunham o molho que me pesava aos ombros. Passos dolorosos que pareciam não terem fim. Em desequilibrios de carreiros, onde, por vezes, um montinho de azeitonas que afinal não eram azeitonas. Porque se o fossem, ali não se encontrariam se nenhuma oliveira por perto e muito menos azeitonas no chão em julho, visto que só lá para Novembro ou Dezembro é que as ditas, maduras. E bem sabemos que as cabras não produzem azeite, quando muito, se antes prenhes, uma ordenhazita pela manhã e outra ao cair da noite. E eu que nunca aprendi a ordenhar uma cabra... fugiam-me antes que lhe pudesse deitar os dedos ao amojo intumescido de leite. De maneira que, ficava sempre à porta do curral, ao lusco-fusco, a segurá-las para que não fugissem, enquanto a minha mãe lá dentro, a ordenhá-las uma a uma. Lembro-me da figueira com dois ou três figos que ninguém comia - talvez por dó ou respeito à sua velhice, não sei - na ponta de um ramo tísico, amarelado de icterícia. Costumava subir por ela acima, para espreitar o que se escondia por detrás do muro alto do outro lado da rua. Um muro, que afinal não o era assim tanto como parecia. Mas, é claro, quando somos pequenos, todos os muros nos parecem altos! O muro era assustador, visto que no cimo arredondado, cacos de vidros, espetados, me impediam de o tentar saltar até em pensamento. Um pedaço de terra abandonado, umas flores entristecidas de sede e uma casa caiada de portas e janelas fechadas, com uma varanda a dar para o quintal onde uma macieira bravo-esmolfe gigante, a afrontar-lhe as vistas, era tudo o que havia para lá do muro. Duas vezes por ano um casal de meia idade a chegar num carro de praça - "o polícia" - todo ele suspensórios que lhe seguravam as calças de quando tinha sido gordo e agora um verdadeiro palito... Abriam o portão que chiava, porque também ele pêrro do reumático que já naquele tempo costumava atacar tudo o que já tivesse ar de ter alguma idade, e desapareciam por detrás do muro. Ao outro dia começava a faina do pobre homem que já poucas forças haveria de ter para o tanto que lhe era solicitado. "Ó José, vai ali ver daquelas silvas antes que elas nos entrem pela janela"!... E atrás das silvas a terra dos quintais toda ainda por cavar. E as batatas por semear, as maçãs por apanhar... Duas ou três semanas e o homem já mais morto do que vivo. Ora de suspensórios, ora de pijama à hora do almoço, enquanto descansava um bocadinho. No fim, outra vez o carro de praça. Eles a carregarem-no de traquitanas e a entrarem nele de seguida, fechando as portas e abalando rua abaixo até desaparecer na curva da casa do Ti Bernardino. Haveriam de voltar meio ano mais tarde por via de recolher o que o José havia deitado à terra, que, sem amanho, já se sabe, as coisas são como são e sem amanho então... não passariam de uns bolicotos de batatas que não dariam nem para o adubo!

 Cleo

sábado, 5 de outubro de 2019

Coisas que nos fazem viajar


Coisas que nos fazem viajar no tempo e voltar aos lugares onde pertencemos e onde vivem as nossas memórias de outras vidas... As tamancas nos pés da minha avó, que, em passitos curtos e ligeiros, caminhavam sobre os penedos lisos da calçada, antes das escadas de cimento que vieram depois. A panela de ferro com tantas estórias guardadas, contadas à mesma lareira onde fervia o caldo das couves. O saquito de pano, onde se guardavam os feijões, o grão de bico, a broa... Os tamancos com atacadores de guita - o mesmo material que me lembro de ver a servir de cinto nas calças do meu avô - era o calçado dos homens mais afortunados, porque os outros andariam descalços... O garrafão de palha onde se levava o vinho para alegrar as sementeiras e empurrar a bucha. O candeeiro que alumiava a noite quando o dia se acabava. Os serões a debulhar o milho ou os feijões, alegrados pelas cantigas ou as estórias de bruxas e lobisomens, que havia sempre na boca de alguém com jeito para as contar e nos encantar. Tudo isso se foi, mas ficaram os objectos, calados, gritando tudo isto em silêncios sepulcrais...! 

Cleo

Somos quem somos




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Somos quem somos e como somos, porque nos orgulhamos das nossas raízes. Temos consciência das agruras da vida de outros tempos e respeitamos a memória de um povo que ergueu o que ergueu com o seu suor e lágrimas!
Ainda que hoje, tudo isso, não passem de vestígios de humanos na paisagem onde terra queimada, em locais inóspitos...

Cleo

Por vezes temos urgência de qualquer coisa



Por vezes temos urgência de qualquer coisa que nem sabemos bem o quê...! Algo sentimental que nos leva a viajar para dentro de nós mesmos, procurando em cada rua, em cada esquina das memórias, nos resquícios da existência queimada pelo tempo. Evocando lugares e pessoas que nos acordam sentimentos adormecidos e nos permitem reviver instantes impossíveis de descrever. Porque só nós os vemos como vemos e como os queremos ver. Os outros não os enxergam e mesmo que enxergassem não quereriam saber. É uma coisa muito particular. Intimíssima. Nossa! E tornamo-nos tão felizes ao tropeçar em pequenos nadas que nos surgem de repente, sem o esperarmos. Momentos cheios de ternura que ficaram gravados, e que, nos é permitido reviver de novo, enchendo-nos a alma de uma indizível felicidade. E pode ser só um gesto, uma expressão, uma lembrança de uma qualquer frase dita num determinado sítio específico. Um sorriso ou a lembrança de um aperto de mão... Pode ser tanta coisa simples a emergir da escuridão do nosso subconsciênte, no meio desta complexidade toda de sermos singulares, simples e mortais humanos.

 Cleo