Quisera o destino que lhe fora reservado logo à nascença, que acabasse os seus últimos anos de vida preso a uma cadeira de rodas.
Quem lhe o disse, muitos anos antes, foi o Dr. Cosme, médico da Casa do Povo de Côja e também um dos mais requisitados no seu consultório particular, mas que ele fez de conta que nunca lhe havia dito nada... Portanto, continuou sempre na sua luta e contrariando as evidências cada vez mais vincadas, com a sua enorme vontade de vencer a doença que lhe corria no sangue livremente como se se tratasse de uma sentença de forca aplicada a um inocente.
Mas de pouco adiantou pois as forças foram-se-lhe esgotando até já não restar nem um único sopro de fôlego que se erguesse dos seus músculos secos como palhas.
Nesse dia chorou lágrimas escondidas de uma vergonha indizível que lhe nascia no mais íntimo e sombrio recanto do sentir.
Enquanto morria por dentro, os seus lábios mexeram-se e deles saiu a frase que não queria ter dito nunca:
"Tragam-me a tal cadeira de rodas que o Dr. Cosme falou daquela vez!" - E disse-o com a voz embargada mas decidida, como se parisse cada uma das palavras num acto doloroso de um parto que lhe havia de trazer um monstro para lhe infernizar o resto dos dias da vida.
A partir dali, não mais voltou pelo seu pé à sua velha oficina deixada de herança por um tio, o mesmo que o levou para sua casa quando este tinha apenas quatro ou cinco anos de vida, criou como filho e lhe ensinou a arte com que haveria de governar a vida.
Essa velha oficina que deixou repleta de histórias escritas com o pó que se soltava da madeira com que ia moldando e dando forma às peças que construía com mestria e o seu próprio suor, emolduradas e pregadas com pregos invisíveis em cada tábua empilhada à espera de ser usada numa cómoda qualquer ou mesmo num psiché fora de moda, que sempre quis fazer lá para casa e até chegou a começar, mas que nunca teve tempo de acabar... e também nas aparas espalhadas pelo chão frio de pedra que a mulher varrera para um canto por lhe atrapalharem os passos sempre que lá ia serrar algum tronco mais comprido para melhor ajeitar na fogueira que os aquecia no inverno rigoroso ou ainda nas teias de aranha sem tempo, empoeiradas e presas aos barrotes do tecto, testemunhas silenciosas de um lutador sem medo ao trabalho que a sua arte lhe oferecia em cada novo desafio a que se propunha. E em cada nova obra acabada, erguia humildemente o seu troféu de vencedor.
E que dizer das ferramentas meticulosamente arrumadas por tamanhos e categorias, nas prateleiras em frente do banco com torno incorporado, que lhe servia de bancada de trabalho e que agora se queixavam do abandono a que estavam confinadas?
E das máquinas ruidosas com que tantas vezes acordava as filhas sem querer, que dormiam a sono solto no andar de cima, no seu quarto que tinha o azar de ficar mesmo por cima da oficina, mas que agora se tinham emudecido sem que o tivessem pedido?
Essas histórias ficaram por lá, espalhadas por toda a parte e são como fantasmas presos no lado de lá daquela porta azul turquesa e que permanece quase sempre fechada.
Sem mais nada para fazer e com o tempo todo que o mundo lhe deu, passou a desfiar e a enrolar em novelo juntamente com a solidão dos dias infinitos, as lembranças que guardara em segredo ao longo de uma vida, numa pequena arca de madeira de castanho que fazia questão de ter sempre ao pé de si, envernizada e talhada pelas suas próprias mãos que empunharam com gosto e determinação, o formão e o martelo da sua obra mais enigmática e até ali escondida dos olhares de todos.
Além de fotografias meio apagadas, páginas de jornais antigos com folhetins do Tin Tin a delirem-se nas dobras e nas pontas, cartas dentro de envelopes ainda com selo e carimbo por cima, escrupulosamente escritos à mão numa caligrafia invejável que só um aparo da época conseguia desenhar, alguns cartões esbatidos pelo tempo, algumas moedas enegrecidas e pouco mais de visível se encontrava no interior daquela arca. Mas, acredito que para além do cheiro a mofo, existia ali muito mais do que aquilo que se via.
Tudo isso se foi com o dono daquele pequeno tesouro. Sete palmos de terra por cima e ficou tudo arrumado sem que ninguém alguma vez soubesse do que ele ali guardava sem se ver e que estava colado a cada uma das coisas em que ele ia pegando, desfiando e enrolando junto com a solidão dos dias...
Quem lhe o disse, muitos anos antes, foi o Dr. Cosme, médico da Casa do Povo de Côja e também um dos mais requisitados no seu consultório particular, mas que ele fez de conta que nunca lhe havia dito nada... Portanto, continuou sempre na sua luta e contrariando as evidências cada vez mais vincadas, com a sua enorme vontade de vencer a doença que lhe corria no sangue livremente como se se tratasse de uma sentença de forca aplicada a um inocente.
Mas de pouco adiantou pois as forças foram-se-lhe esgotando até já não restar nem um único sopro de fôlego que se erguesse dos seus músculos secos como palhas.
Nesse dia chorou lágrimas escondidas de uma vergonha indizível que lhe nascia no mais íntimo e sombrio recanto do sentir.
Enquanto morria por dentro, os seus lábios mexeram-se e deles saiu a frase que não queria ter dito nunca:
"Tragam-me a tal cadeira de rodas que o Dr. Cosme falou daquela vez!" - E disse-o com a voz embargada mas decidida, como se parisse cada uma das palavras num acto doloroso de um parto que lhe havia de trazer um monstro para lhe infernizar o resto dos dias da vida.
A partir dali, não mais voltou pelo seu pé à sua velha oficina deixada de herança por um tio, o mesmo que o levou para sua casa quando este tinha apenas quatro ou cinco anos de vida, criou como filho e lhe ensinou a arte com que haveria de governar a vida.
Essa velha oficina que deixou repleta de histórias escritas com o pó que se soltava da madeira com que ia moldando e dando forma às peças que construía com mestria e o seu próprio suor, emolduradas e pregadas com pregos invisíveis em cada tábua empilhada à espera de ser usada numa cómoda qualquer ou mesmo num psiché fora de moda, que sempre quis fazer lá para casa e até chegou a começar, mas que nunca teve tempo de acabar... e também nas aparas espalhadas pelo chão frio de pedra que a mulher varrera para um canto por lhe atrapalharem os passos sempre que lá ia serrar algum tronco mais comprido para melhor ajeitar na fogueira que os aquecia no inverno rigoroso ou ainda nas teias de aranha sem tempo, empoeiradas e presas aos barrotes do tecto, testemunhas silenciosas de um lutador sem medo ao trabalho que a sua arte lhe oferecia em cada novo desafio a que se propunha. E em cada nova obra acabada, erguia humildemente o seu troféu de vencedor.
E que dizer das ferramentas meticulosamente arrumadas por tamanhos e categorias, nas prateleiras em frente do banco com torno incorporado, que lhe servia de bancada de trabalho e que agora se queixavam do abandono a que estavam confinadas?
E das máquinas ruidosas com que tantas vezes acordava as filhas sem querer, que dormiam a sono solto no andar de cima, no seu quarto que tinha o azar de ficar mesmo por cima da oficina, mas que agora se tinham emudecido sem que o tivessem pedido?
Essas histórias ficaram por lá, espalhadas por toda a parte e são como fantasmas presos no lado de lá daquela porta azul turquesa e que permanece quase sempre fechada.
Sem mais nada para fazer e com o tempo todo que o mundo lhe deu, passou a desfiar e a enrolar em novelo juntamente com a solidão dos dias infinitos, as lembranças que guardara em segredo ao longo de uma vida, numa pequena arca de madeira de castanho que fazia questão de ter sempre ao pé de si, envernizada e talhada pelas suas próprias mãos que empunharam com gosto e determinação, o formão e o martelo da sua obra mais enigmática e até ali escondida dos olhares de todos.
Além de fotografias meio apagadas, páginas de jornais antigos com folhetins do Tin Tin a delirem-se nas dobras e nas pontas, cartas dentro de envelopes ainda com selo e carimbo por cima, escrupulosamente escritos à mão numa caligrafia invejável que só um aparo da época conseguia desenhar, alguns cartões esbatidos pelo tempo, algumas moedas enegrecidas e pouco mais de visível se encontrava no interior daquela arca. Mas, acredito que para além do cheiro a mofo, existia ali muito mais do que aquilo que se via.
Tudo isso se foi com o dono daquele pequeno tesouro. Sete palmos de terra por cima e ficou tudo arrumado sem que ninguém alguma vez soubesse do que ele ali guardava sem se ver e que estava colado a cada uma das coisas em que ele ia pegando, desfiando e enrolando junto com a solidão dos dias...
Cleo
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