domingo, 20 de outubro de 2019

Lembro-me do cheiro a feno acabado de ceifar



Lembro-me do cheiro a feno acabado de ceifar. Paveia a paveia, ugado a preceito por quem tão bem sabia, compunham o molho que me pesava aos ombros. Passos dolorosos que pareciam não terem fim. Em desequilibrios de carreiros, onde, por vezes, um montinho de azeitonas que afinal não eram azeitonas. Porque se o fossem, ali não se encontrariam se nenhuma oliveira por perto e muito menos azeitonas no chão em julho, visto que só lá para Novembro ou Dezembro é que as ditas, maduras. E bem sabemos que as cabras não produzem azeite, quando muito, se antes prenhes, uma ordenhazita pela manhã e outra ao cair da noite. E eu que nunca aprendi a ordenhar uma cabra... fugiam-me antes que lhe pudesse deitar os dedos ao amojo intumescido de leite. De maneira que, ficava sempre à porta do curral, ao lusco-fusco, a segurá-las para que não fugissem, enquanto a minha mãe lá dentro, a ordenhá-las uma a uma. Lembro-me da figueira com dois ou três figos que ninguém comia - talvez por dó ou respeito à sua velhice, não sei - na ponta de um ramo tísico, amarelado de icterícia. Costumava subir por ela acima, para espreitar o que se escondia por detrás do muro alto do outro lado da rua. Um muro, que afinal não o era assim tanto como parecia. Mas, é claro, quando somos pequenos, todos os muros nos parecem altos! O muro era assustador, visto que no cimo arredondado, cacos de vidros, espetados, me impediam de o tentar saltar até em pensamento. Um pedaço de terra abandonado, umas flores entristecidas de sede e uma casa caiada de portas e janelas fechadas, com uma varanda a dar para o quintal onde uma macieira bravo-esmolfe gigante, a afrontar-lhe as vistas, era tudo o que havia para lá do muro. Duas vezes por ano um casal de meia idade a chegar num carro de praça - "o polícia" - todo ele suspensórios que lhe seguravam as calças de quando tinha sido gordo e agora um verdadeiro palito... Abriam o portão que chiava, porque também ele pêrro do reumático que já naquele tempo costumava atacar tudo o que já tivesse ar de ter alguma idade, e desapareciam por detrás do muro. Ao outro dia começava a faina do pobre homem que já poucas forças haveria de ter para o tanto que lhe era solicitado. "Ó José, vai ali ver daquelas silvas antes que elas nos entrem pela janela"!... E atrás das silvas a terra dos quintais toda ainda por cavar. E as batatas por semear, as maçãs por apanhar... Duas ou três semanas e o homem já mais morto do que vivo. Ora de suspensórios, ora de pijama à hora do almoço, enquanto descansava um bocadinho. No fim, outra vez o carro de praça. Eles a carregarem-no de traquitanas e a entrarem nele de seguida, fechando as portas e abalando rua abaixo até desaparecer na curva da casa do Ti Bernardino. Haveriam de voltar meio ano mais tarde por via de recolher o que o José havia deitado à terra, que, sem amanho, já se sabe, as coisas são como são e sem amanho então... não passariam de uns bolicotos de batatas que não dariam nem para o adubo!

 Cleo

Sem comentários:

Enviar um comentário