quarta-feira, 23 de outubro de 2019

E volto ao sítio onde as memórias vivem



E volto ao sítio onde as memórias vivem para além do tempo e do espaço que ocupam no meu pensamento. Antes, costumava ser apenas uma, quando, na verdade, deveriam ser mais porque eles vivos ainda e a desejarem terem-nos por perto mais tempo. Mas a vida... De maneira que, agora vou duas ou três vezes por ano. Mas a casa quieta, calada, vazia... A casa e o quintal, outrora um campo de milho ladeado da horta junto ao muro. As alfaces, os tomates, os pimentos, as ervilhas, as cebolas, os alhos e as cenouras, ocupavam o cimo do terreno onde uma leira de morangos compunham o quadrado dos mimos. E a salsa a espreitar por entre as pedras do muro a dar sabor ao refogado. Ao domingo matava-se um coelho que eu levava dentro dum saco a casa do vizinho, por via da falta de coragem da minha mãe; dois esticões na espinha e nem um pio... esfolava-o atrás da porta, preso por uma pata a um cordel. Depois, a cebolada a cobri-lo no tacho e o aroma a abrir-nos o apetite! O sino da igreja da Benfeita a anunciar o fim da missa e pouco depois o barulho do triciclo do meu pai a queixar-se da ladeira. A opa dobrada no braço e depois cuidadosamente arrumada no cabide de madeira dentro do guarda-fatos, as contas dos gastos na mercearia do Ti Artur do correio, os tostões que não batiam certo... moíam-se os miolos até aparecerem e só depois, finalmente, o almoço. O Rogério empoleirado na bicicleta, também ela a chiar por causa da ladeira. De tarde deitavam-se as cabras e fazia-se renda para aproveitar o tempo. A prima Zézinha fez umas quantas colchas e toalhas de mesa, a minha mãe fazia naperons que tirava das revistas de lavores e eu ainda cheguei a fazer um também, só que nunca percebi porque encolheu do meio para a frente. De maneira que nunca mais fiz mais nenhum. De vez em quando aparecia a Patrocínia (que costumava ser sardinheira mas que também tinha uma retrosaria no andar de baixo da sua casa na Benfeita), com a loja às costas, que montava no largo: umas colchas, uns lençóis, toalhas variadas em jogos e desirmanadas, panos de cozinha, cobertores, tecido para cortinados e vestidos, saias, blusas, aventais, cuecas, meias, collants de vidro e tantas outras tralhas das boas naquela espécie de feira só dela cujas clientes íam aparecendo por força da sua insistência de porta-a-porta. Até parecia mal não se ir lá fazer o jeito de comprar alguma coisinha, quanto mais não fosse, para meter na mala do enxoval da filha ou da neta, onde afinal, ainda cabia tanta coisa e aquilo era artigo do bom!...

 Cleo

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