quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Ao Domingo não se trabalhava.



Ao Domingo não se trabalhava. Diziam que era pecado... Por isso só se faziam pequenos trabalhos leves, coisa pouca que não escandalizasse o povo da aldeia, caso contrário haveria de haver falatório pela certa! Por isso, nada de cavar terra nem de roçar mato, se não se quisesse andar na boca do povo há falta de melhor para tema de conversa. Era também um dia sagrado que se distinguia dos outros quando pela volta das onze da manhã, se ouviam as primeiras badaladas do sino da torre da igreja da freguesia a avisar os mais distraídos, que dali a uma hora começava a missa; daí a meia hora voltaria a chamar. Tomava-se o banho semanal obrigatório e quem não tivesse onde o tomar, que pegasse num alguidar e ao menos se lavasse a prestações, vestisse o melhor fato e se pusesse ao caminho. Se fosse pelo atalho e sendo a descer, uns vinte minutos a andar bem deveriam chegar. Para cima é que eram elas... mas talvez se arranjasse alguma boleia, pois que os mais abastados que tinham automóvel também costumavam ir à missa e alguns até eram da irmandade que em dias de festa e de funerais, se alinhavam em duas fileiras e acompanhavam a procissão com a pompa da circunstância. Albertina também costumava ir à missa de Domingo, mas tinha um problema: era preciso calçar sapatos! Os pés dela não gostavam de andar apertados dentro de sapatos, pois que sempre se acharam livres e caminhavam ligeiros pelos carreiros das cabras nem que estivesse geada negra, daquela que emergia da terra no pico do Inverno. Mas ir para a missa descalça não parecia lá muito bem... Então, Albertina fazia o caminho quase todo descalça, até ao cimo das barreiras, de onde já se avistava a igreja e o adro cheio. Um pouco mais abaixo, na fonte das moscas, passava os pés pelo fio da água que corria em bica e, conformada, lá calçava as meias de vidro, porque as de mousse logo se agarravam à pele grossa e compacta dos pés que mais pareciam uma sola e de seguida enfiava a custo os sapatos que lhe faziam gemer os dedos e lancinavam em cada passada que dava a caminho da santa missa. Ainda nem tinha passado da soleira da porta da igreja e já só pensava na hora de voltar a tirar os malditos sapatos que lhe apertavam a alma até suar, asfixiando-a sem a deixar purificar-se como devia. E nem os mexericos que se bichanavam quase em surdina, lhe desviavam a atenção do desconforto que sentia. 

Cleo

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