Num tempo em que tanto se fala de pobreza e caridade, desigualdade e injustiça social, não posso deixar de me lembrar de uma história que o meu pai costumava contar algumas vezes, sempre que o tema vinha à baila e por ali havia gente com fartura, que não se importava nada de ouvir as mesmas histórias com o mesmo entusiasmo de sempre e que, estava mais do que visto, que acabaria quase sempre, no final, com umas valentes gargalhadas de todos os ali presentes. Como aquela do homem que certa vez por ali passou e, após ter granjeado alguma coisa de comer e beber, no fim se vira para o meu pai com um ar muito sério e, por ter visto a sua arte e engenho no fazer, bem como, a perfeição do seu trabalho em algumas peças de mobiliário, lhe pede uma tábua e um prego para levar consigo por via de, quando chegasse à sua terra, a pregar lá numa porta a ver o que é que aquilo dava... Mas esta não era uma história dessas. Esta era uma história mais séria e que não motivava gargalhadas mas antes silêncio e reflexão. Passo então a relatar a dita história: Parece que já o sol ía alto quando o pobre homem se assomou á soleira da porta da oficina que estava sempre aberta e, num gesto humilde, perguntou se podia entrar. Depois de dar a salvação com um tímido "Bom dia", passou de imediato ao que ali o trazia... - Ó senhor, não tem por aí alguma coisinha que não lhe faça falta e que me possa dar? - O seu olhar era tão penoso e suplicante, que não haveria ninguém que perante tal, não se comovesse. Vestido de trapos remendados e os pés descalços, ali estava um pobre desgraçado que, para sobreviver naquele tempo em que não havia reformas mínimas nem dinheiro de espécie alguma a tilintar no fundo do bolso, calcorreava caminhos de terra em terra, a pedir esmola aqui e ali, apelando às almas generosas que dele se enchiam de pena, enquanto afirmava que qualquer coisita lhe servia. Não havia esquisitices. De maneira que, o meu pai disse-lhe que esperasse ali que ele já vinha. E subiu as escadas que davam para o andar de cima, onde foi procurar por algo na cozinha, que pudesse amenizar a fome que a criatura denunciava nos olhos e na magreza do corpo. Além de um prato de sopa de feijão que a minha mãe tinha feito ao almoço e de um pedaço de pão com sardinha frita, trouxe também um par de botas que já não usava por estas lhe terem feito uns malditos calos que o obrigaram a deixá-las de lado, ainda que fossem praticamente novas. - Tome lá isto e coma á vontade - disse-lhe entregando-lhe a sopa e o pão, guardando as botas para depois do homem matar a fome. Após a refeição, estendeu-lhe as botas dizendo: "veja lá se estas botas lhe servem". Os olhos da criatura até marejaram de tanta alegria ao verem as botas. Nunca tal imaginou, quando ali chegou e apenas pediu algo que lhe aconchegasse o estômago vazio! Pegou nas botas e começou a tentar calça-las. Ora puxava de um lado ora do outro e o raio das botas não havia maneira de entrarem. Mas que raio de azar! - Parece que não querem entrar. não lhe servem. - Servem servem meu senhor, eu é que tenho os pés inchados!... De maneira que, agradeceu muito tudo o que o meu pai lhe havia dado e lá foi com o estômago composto, botas ao ombro e os pés descalços... É claro que as botas não lhe serviam, nem quando os pés desinchassem... Mas eram suas aquelas botas e ai de quem lhe as quisesse tirar!
Cleo
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