domingo, 17 de março de 2019
Meti-me numa cápsula do tempo
Meti-me numa cápsula do tempo e viajei sem destino. Achei-me no mesmo lugar de sempre, de onde, na verdade, nunca cheguei a partir... Aquele lugar é refém das minhas memórias e é para lá que fujo em segredo tantas e tantas vezes quando me quero esconder deste tempo de agora. E vou pelos carreiros que conheço como as minhas próprias mãos. Tanto na ida como na vinda, tenho a companhia sempre pronta e desinteressada dos pardais e dos cucos esquivos, que me seguem lá no alto dos ramos dos pinheiros que me levam pela sombra. A velha casa de pedra serve-me de abrigo aquando da trovoada inesperada. Existe lá uma prateleira com livros já meio desfeitos e aos quais faltam muitas folhas, mas, nas que lhes restam, há sempre qualquer coisa nova, que ainda não tinha visto nem lido... O velho abrunheiro, ao fundo da quelhada grande, oferece-me a sombra apetecível onde me deito descansada sob a relva e durmo uma sesta merecida. Há joaninhas que se misturam com morangos selvagens, salpicando de vermelho o ervascal abandonado por onde me entretenho a brincar enquanto a minha mãe trata da rega dos feijoeiros ali ao lado. Pela noitinha, de volta a casa, eu e os cabritos saltitamos contentes pelos muros adiante, ou não fossemos todos crianças! É dia da matança do porco. Levanto-me mais cedo que o costume e corro para o mais longe que posso. Sento-me numa pedra, meto os dedos nos ouvidos (não quero ouvir os guinchos do pobre coitado) e espero uma boa meia hora... depois regresso. Um serão quente. O canto dos grilos a cortar o silêncio. Um petromax na mão, alumia-nos o caminho. Eu às cavalitas do meu pai. Um caminho estreito. Uma casa com um outro petromax pendurado no tecto. Um monte de espigas à espera de serem debulhadas... meia dúzia de pessoas, cada uma com o seu mangual a bater uma a uma e o milho vai saltando e formando um imenso lago de grãos... Há conversas, há risos e gargalhadas, há histórias de outros tempos ainda mais remotos. É hora de voltar. Amanhã o milho irá ao sol... De tamancos com sola de pau, sobe ligeira a escada encostada aos ramos da oliveira grande do pomar. A mãe, aflita, chama-a, mas ela, teimosa, finge que não ouve e sobe cada vez mais depressa. Sobe até ao fim; até ao último banço da escada de madeira... A fogueira crepitava e erguia labaredas altas, tal como ela gostava. Sentadas no bordo, de mãos e pés esticados em direcção ao lume, riamos despreocupadas. Talvez o nosso riso se devesse apenas ao conforto de ver aquele lume a arder ali mesmo à nossa frente, a aquecer-nos por fora e por dentro. Nunca mais comi uma sopa de couves aferventada tão saborosa como aquela... Ao lado, uma malga de vinho e um naco de broa com sardinha, acabadinha de sair das brasas da fogueira. Noutro dia, no telhado da mesma casa, sentadas nas lajes aquecidas pelo sol de Março, pedia-me que lhe enfiasse as agulhas com linha preta porque os seus olhos cor de mar rasavam-se de água e não a deixavam vislumbrar o buraco minúsculo da agulha. Estava sempre a coser qualquer coisa enquanto me ía contando histórias de lobos e de homens.
Cleo
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