sábado, 16 de março de 2019

E de repente, encontrei quarenta anos


E de repente, encontrei quarenta anos a separar-me desta manhã de nevoeiro em que o meu pai resolveu meter o sobretudo pelos ombros, a minha mãe se encolhia de frio, a minha madrinha se empoleirou ao pé de mim em cima do banco e a minha irmã (de bibe tal como eu) negociava uma brincadeira qualquer com o vizinho do lado sob o olhar distraído da sua mãe. Conversavam sobre qualquer coisa banal, certamente. Alguma dor nas articulações ou sobre o atraso da sementeira do milho por causa do tempo. Ao lado, a enorme casa de pedra dos gatos da tia Urbana que eu só conhecia da janela alta. E o limoeiro, tão pequeno ainda, a fazer companhia às oliveiras do quintal da Lídia. O muro de pedras soltas já meio desfeito, a denunciar o abandono de todos os tempos e o poste de madeira do telefone público que vivia na nossa casa e em cujo topo costumavam poisar as corujas para nos virem cantar agoiros à noite. O poste ainda por lá continua nos dias de hoje, para deleite dos mochos ao contrário do telefone que há muito se foi. O muro agora é outro, mais moderno, de linhas rectas e aprumadas. O banco, ponto de encontro de gente quando a gente aparecia sem ou com hora marcada, guardador de segredos e outras estórias, tantas... Coisa pouca. Nada que mereça grande perda de tempo para a maioria das pessoas e também o seria para mim, não fosse eu agarrada às coisas que me dizem tanto!... Portanto, a meu ver, é um pedaço de lembrança, suspenso por um fio de tempo, a medir distâncias e a tornar insuportável o peso da leveza das coisas insustentáveis...

Cleo

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