terça-feira, 5 de março de 2019

Quando viva


Quando viva, costumava andar sempre por ali. Primeiro, antes da perna partida, das canadianas e da solidão da cama perpétua, partilhada com a gatita preta que lhe arranjaram para que tivesse com quem falar de vez em quando... Ainda a caminhar direita. apesar da grossura dos óculos miopes a impedi-la de ver o mundo a longa distância. Costumava não perder nem uma só sagrada missa dos domingos, na igreja da Benfeita mais as outras missas todas e procissões com festas e romarias para onde caminhava sempre a pé, fosse ao santuário da Nossa Senhora das Preces, fosse ao do Mont'Alto e a outras santas igualmente dignas das suas visitas, tudo coisa para muitas horas de caminho visto serem, quase todas elas longe da terra. Mas sempre sem nada nem ninguém a estorvá-la de ir, muito menos as vozes de reprovação nas suas costas às quais fazia ouvidos moucos! E tudo isto para grande desespero da irmã com quem vivia, pessoa muito digna e irrepreensível na sua conduta de fidelidade à condição de mulher solteira, que possuía. Era, portanto, uma alma livre que fazia só o que queria e bem entendesse! De vez em quando, uma ida à vila por causa de um casamento e portanto, uma permanente a carecer das mãos da cabeleireira. Outras vezes, quando não precisava de caracóis a fazerem-na parecer bem, o "Rusga" que aparecia de quando em vez por via de cortar o cabelo aos homens, servia muito bem... De maneira que, um molhito de caruma à cabeça, que atirava para o chão à porta do curral mesmo em frente do lavadouro, onde, o tilintar das campainhas e o cheiro a estrume quente de três ovelhas a ruminarem a erva da desjejua. Lá mais para a tarde, depois da sesta, outro molhito de lenha para a fogueira do inverno e um saco de pinhas, compunham as obrigações a que a si mesma se estipulara. Depois, o resto da tarde, passava-o de conversa com quem calhasse que por ali passasse ou viesse lavar roupa ao lavadouro. Outras vezes, quando não aparecia ninguém, tirava os óculos míopes, e entretinha-se a queimar rente aos olhos, as letras miúdas da Comarca de Arganil que o ti Alberto carteiro lhe havia trazido se fosse Terça ou Quinta-Feira. As notícias, quase sempre as mesmas(fora as crónicas dos ilustres colaboradores com jeito para a crítica), mas, ainda assim, sempre novas derivado ao cheiro da tinta...!

Cleo

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