terça-feira, 5 de março de 2019
Mergulhada no seu mundo
Mergulhada no seu mundo de demências(hoje sabemo-lo terem este nome e estar associado à idade avançada das pessoas, mas naquele tempo nem se pensava nisso), era sobretudo de noite que se evidenciavam mais as suas visões de delírio. De modo que, o chamamento por "elas" era constante por causa de uns bichos que se lhe afiguravam passear pelas tábuas do frontal que eram também as paredes do cubículo onde morava há mais de dez anos. Primeiro por birra e depois por imposição da sua própria condição física que entretanto se apoderou do frágil corpo magro, limitando-lhe os movimentos e atirando-o de vez para a cama de ferro encostada a um dos lados, só interrompido pelas cada vez mais frequentes idas ao bacio, para se aliviar de todos os fluídos que lhe pareciam inundar todo o interior e se insurgiam em borbotares incontroláveis de urgências... Ali comia, sentada na cama, não dispensando por coisa nenhuma o pinguito de vinho que lhe metiam no fundo do copo e que para ela era como um elixir de vida. Ah, e de quando em vez um pires de arroz doce (então avó, gostou? Ao que ela respondia de imediato: o que é doce nunca amargou!) a fazer-lhe brilhar os olhos cor de mar. A maior parte do tempo falava em voz alta com os botões do seu casaquito de malha que lhe compunha os ossos dos ombros. Falava das coisas do antigamente que tinha gravadas ainda na memória, tão frescas como se o tempo não houvesse passado desde essa altura. Ao mesmo tempo que dobrava, desdobrava e voltava a dobrar vezes infinitas, o pequeno lenço de assoar numa tentativa de perfeição em forma de quadrado. De quando em vez lá passavam em correria uma ou a outra neta ou até mesmo as das uma a seguir à outra e que também moravam na mesma casa. Bem as chamava para se sentarem um pouco ao pé de si na borda da cama, com a promessa em mente de mil histórias para lhes contar(que quando mais pequenas ali as demoravam), mas elas, com tantos outros afazeres mais apelativos a tomarem-lhes conta dos destinos imediatos e igualmente da vontade. De maneira que, lá se conformava com a sua imensa solidão e às vezes até cantava para quebrar a monotonia daquela existência errante e confinada à clausura naquela espécie de antecâmara onde esperava com tanto vagar, a morte já anunciada desde o dia em que nascera, decorria ainda o já tão longínquo ano de 1896 do Séc. XIX.
Cleo
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