quinta-feira, 7 de março de 2019

Naquele tempo, ainda não havia carrinhas



Naquele tempo, ainda não havia carrinhas que nos fossem buscar e trazer a casa, de modo que, ía-se a pé pelos carreiros abaixo até à Benfeita e depois subia-se a ladeira toda até ao cimo de tudo a caminho da escola que estava sentada no alto do outeiro, virada de frente para o Pai das Donas. Passava-se à porta dos irmãos sapateiros, sempre na sua faina a coser cabedal e a colar palmilhas, a martelar e a remendar meias-solas de botas que chegavam a ir lá parar por mais de duas ou três vezes antes de ficarem sem préstimo algum. O cheiro a cabedal e a cola espalhava-se pela rua e só na curva da casa dos irmãos"malucos" é que deixava de se sentir. Chamavam-lhe malucos por não serem muito sociáveis e passarem a vida em casa, onde por vezes se assomavam a uma das janelas altas a ver quem passava na calçada. Em tempos viviam com a mãe, mas desde que ela morrera que passaram a viver sozinhos. Pouco mais se sabia daquelas estranhas criaturas. Um pouco mais acima, lá estava o papagaio da dona Ilda a dizer-nos "Olá!" ou então outras coisas menos dignas que a rapaziada lhe costumava ensinar... Lá mais ao cimo da rua íngreme, outro "fantasma" debruçado na antiga janela de correr ao meio e para cima, com muitos quadrados de vidrinhos, atento ao movimento da canalha que por ali passava àquela hora. Antunes, penso que era assim que se chamava o velhinho de forte bigodaça já fora de moda. A Leninha ainda nova mas que parecia muito mais velha derivado à grossura dos seus óculos míopes, mais duas ou três vizinhas conversavam entre esquinas e o barbeiro preparava-se para fazer a sua volta costumeira, de pasta na mão e boina espanhola enterrada na cabeça até às orelhas. Talvez fosse até às Luadas ou aos Pardieiros, se calhar à Dreia, onde tinha a clientela de guedelhas grandes à sua espera. De quando em vez, lá vinha o João de rojos(antes do carrinho de rolamentos feito de uma caixa de sardinha, que os amigos lhe arranjaram). Ele bem falava, falava... mas eram quase imperceptíveis as suas palavras. Nada que o impedisse de ir a todas as festas das aldeias vizinhas e por lá ficar até a festa acabar e alguma boa alma se compadecer e lhe improvisar um canto qualquer para pernoitar. Por vezes passavam-se dias até aparecer alguma camioneta que lhe desse uma boleia de volta até à Benfeita. Mas penso que era feliz assim(sempre a rir). E ao cimo de tudo, finalmente a escola onde a miudagem se juntava toda, cada qual das suas terras e muitos da Benfeita. Menos os dos Pardieiros, que esses tinham a sua própria escola. Lembro-me do arroz de atum e da sopa que a Ti Nazaré nos fazia para o almoço e do leite em pó que demorava a "descaroçar" naquela panela tão grande. Isto já a partir da segunda classe, porque na primeira, ainda era preciso levar a marmita das batatas fritas com omeleta ou o que demais as nossas mães lá tivessem para nos mandar. Lembro-me também daquela menina que era filha de um resineiro e que, por serem tão pobres, a marmita dela era um púcaro da resina, daqueles pretos de plástico...

Cleo

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