quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

No tempo em que me eu criei


No tempo em que me eu criei, metia-se uma côdea de broa na algibeira e abalava-se, de barriga vazia, com uma corda e uma roçadoira para o mato..." - Esta era uma frase que me lembro de ouvir algumas vezes, especialmente quando havia necessidade de fazer ver a diferença entre esses tempos de miséria e os que se viviam na actualidade da época. Portanto, éramos uns sortudos em ter nascido naquele tempo em que as dificuldades já eram menores, embora o não fossem assim tanto, para todos. De maneira que, na nossa casa, antes da desjejua, ainda era preciso ir abrir as galinhas, fechadas na escuridão do poleiro durante a noite e já mortinhas por ver a luz do dia, desde o CÓCÓRÓCÓCÓ madrugador do rei da capoeira. Só após esse pequeno mandado, uma ou duas fatias de pão de segunda em cima da torradeira de levar ao lume, e ficar ali a tomar conta para prevenir o cheiro a queimado e depois se barrar de "planta". Para empurrar as torradas, uma canecazita de café de cevada que se entornava da cafeteira de alumínio, com um pinguito de leite a mudar-lhe o negro da cor. A alternativa seria uma tigela de pão migado com o mesmo café a ferver espalhado por cima para amolecer e um pinguito de leite ainda mais pequeno que o da nossa caneca, a tingir tudo aquilo de castanho (poderia até ser mais, mas só se fosse do das ovelhas ou das cabras e esse com um sabor e consistência demasiado fortes para a nossa esquisitice). Mas, mais uma vez, não era para todos... Havia casas, em que nem torradas de "planta", nem leite dos pacotes de cartão, ou sequer daquele em pó que, de vez em quando, também aparecia na nossa casa. De modo que, comiam uma malga cheia das sopas de pão migado, que, por vezes, até eram de broa seca e rija, só com o café negro e a colherzita de açúcar por cima, a adoçar e a ver se assim arranharva menos na garganta. Vi muita vez, quando ia chamar os colegas de jornada a caminho da escola, enquanto esperava que deglutissem a malga que abraçavam com as mãos sobre o regaço, sentados num mocho junto da lareira acesa. Nem sei se eles saberiam do sabor das torradas... Perante tudo isto, éramos, portanto, umas felizardas no que tocava ao luxo na hora da desjejua!

 Cleo

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