quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019


De vez em quando, assim sem avisarem, memórias a assaltarem-me a janela do sótão onde tenho guardadas prateleiras e prateleiras de lembranças. Algumas já tão antigas que, se as quisesse ir buscar de repente, não as acharia derivado à desarrumação que por ali impera. Trastes a estorvarem no caminho, que seria preciso mais de um dia inteiro para lhes dar uma ordem. Se pudesse, muitos deitaria-os ao lixo; mas não valeria a pena, pois tenho a certeza de que ganhariam vida outra vez e voltariam mesmo contra a minha vontade, quais almas penadas e teimosas a atentarem-me o sossego dos pensamentos. Por isso, para ali estão de monte, a estorvar-me no caminho e a dificultarem-me a vontade de chegar depressa às coisas que realmente me importam. Como aquela vez em que se andava a apanhar o milho e se iam acartando as espigas para o meio da estrada, ali mesmo, em frente à porta da oficina onde o meu pai trabucava, ora a martelar pregos na madeira, ora a serrar qualquer coisa que se diluía no barulho infernal da máquina de serra. De quando em vez, também a plaina para cá e para lá, num vaivém orgulhoso de lisuras.
Do milho todo que ali estava, carregou-se tanto ou tão pouco, que era uma montanha de espigas maduras que fariam inveja a um montão de brita numa pedreira! E ali mesmo, no meio da estrada onde era suposto passarem os carros mas que se passavam dias e dias sem que passasse qualquer automóvel. De maneira que, também não seria naquele dia que ali haveria de passar algum. De maneira que, no caso de lá vir algum, haveria de roncar ao fundo da rua e num instantinho também se arredavam as espigas mais para o lado para lhe dar passagem ainda que à rasquinha do muro. Mas não. Não passou automóvel nenhum!
Era o milho todo do Quintal, de ambas as Penedas, a de cá e a de lá. Também o do Pomar e ainda o do Sandinho. Aproveitaram-se as ajudas da prima Laurinda da capela, da Silvéria do Zé Albano, da Esmeralda e o Silvano que também trouxe um saquito. E tudo acartado para ali num só dia. De maneira que, da parte da tarde, não se arredou pé dali até se desfolhar tudo,  visto que o estorvo da via pública...
O meu pai ainda foi buscar a sua máquina de tirar retratos, dizia ele que o último grito da altura em que a comprou, ali por alturas dos primeiros anos de sessenta, quando morava em Lisboa.  Apontou o olho do fole para nós, todos sorridentes, entre os folhos e as barbas de milho, e um tiro de flash a levar-nos lá para dentro... Mas nunca se chegou a revelar o rolo que acabou por se estragar no interior da máquina. Uma pena, isso é que foi! Sendo assim, deste episódio só se salvaram mesmo as imagens que retive na memória e com as quais aqui relatei, o melhor que pude, criando este retrato a preto e branco.

Cleo

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