terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

De vez em quando


De vez em quando, coisas despropositadas a povoarem-me a memória. Restos de colecção de tempos de outrora a intrometerem-se e a misturarem-se com as coisas de agora. Não roupas nem móveis. Episódios longínquos e inconformados, porque atirados ao vão do esquecimento. Por exemplo, uma cesta de verga à cabeça de uma mulher, tapada com um pano de xadrez branco e encarnado a surgir lá ao longe no caminho em que fetos altos a engolirem-lhe o corpo. Apenas a cesta apoiada na rodilha de trapos e à medida que se aproximava, uma nuvem invisível com cheiro a guisado a poluir o aroma dos pinheiros. Seria perto do meio - dia, porque ao meio-dia horas de almoço para quem ao romper da aurora se tinha já feito ao caminho. Isto, porque o lugar onde as heranças das terras de cultivo, perto das nascentes da serra numa fartura de águas porque as sementeiras e o renovo a carecerem de amiúdes regas, mas, está visto, que distantes das casas da aldeia. Portanto, meio dia de trabalho no corpo e sonoros roncos a protestarem do vazio do estômago. De maneira que, chegada a cesta, um outro ânimo a iluminar o rosto onde o suor em bica e que um lenço puxado do bolso se apressava em limpar. Toalha estendida no chão de uma assentada de sombra e coisas que se tiravam da cesta a encherem-na de farturas variadas para além do guisado de bacalhau que já se havia antes anunciado. E num instante, todos sentados de roda do farnel e entre uma garfada e um pedaço de broa molhado no molho cor de laranja por causa do colorau, uma estória ou uma chalaça a puxar o riso fácil de quem, para ser feliz, não precisava de muito mais que a dureza da vida herdada de geração em geração desde tempos ancestrais. Não conheciam nem ambicionavam outra visto que aquela já lhes ocupava a quase totalidade da existência. Aliás, a história do "Corecho" que a minha avó me contava vezes sem conta, era um bom exemplo disso mesmo - nem tempo para arranjar uma esposa o pobre do homem tinha - pois que da sementeira até à recolha do renovo, era uma trabalheira que ninguém fazia ideia! Ele era o sacho, a assenta e a rega... os molhos de mato para os currais onde o estrume... a azeitona... as batatas... as videiras... os feijões e o milho...

Cleo

Sem comentários:

Enviar um comentário