quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019




Longe vão os tempos em que as aldeias fervilhavam de vida. As casas estavam cheias de gente que trabalhava nos campos, alegre, pois não conheciam outro modo de vida e os seus desejos de ambição resumiam-se às colheitas fartas que assim afastavam o espectro da fome. Mas havia fome, muita fome! Estou a falar de um tempo antigo, do qual ouvia histórias de sardinhas divididas por três, de côdeas de broa untadas com banha a servir de manteiga, de castanhas piladas cozidas quando as batatas já se haviam acabado e de refeições em que a malga era só uma e se colocava no meio da mesa (quando havia mesa e no caso de não haver, de roda do bordo da fogueira, ao borralho), onde a família comia em silêncio depois de dar graças ao divino por mais aquela refeição... o silêncio da refeição não se devia ao não terem que dizer, mas sim ao tempo que perderiam se ocupassem a boca com palavras em vez de mastigar o quinhão que lhes cabia. As batatas eram cozidas com a pele por via de não desperdiçar nada. A broa, muitas das vezes, mesmo dura, era o único conduto que havia.
As crianças pequenas (canalha) eram deixadas na rua todo o santo dia, entregues a elas próprias, enquanto os pais e os irmãos mais velhos cuidavam do renovo e das colheitas. Certa vez, contava o meu pai, numa tarde em que a fome começava a apertar, convenceu o amigo de brincadeiras, a escalar a parede do velho casebre onde ele sabia, estar pendurado na trave, o cesto das sardinhas trazidas na véspera, do mercado de Côja. Haveriam de durar quinze dias, não fossem eles lá pesca-las e tratar de as assar nas brasas da fogueira...
Uma valente tareia, foi tudo o que restou do episódio, para além da barriga cheia, é claro, e de uma história para contar aos filhos e aos netos, se bem que estes últimos tenham tido dificuldades em acreditar, visto que nada lhes falta e não conhecem as consequências da palavra miséria, ou, se calhar, nem a própria da palavra.


Cleo

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