quarta-feira, 10 de maio de 2023

Do armário embutido na parede do quarto que era o nosso, ou seja da minha irmã e meu, gritos mudos de instrumentos de cordas laças que há muito não viam dedos que as tocassem. Ou que, em minúcias de artista, as afinassem a preceito até que gemessem em crescendo, desde o "Dó" até ao "Si", cada uma das notas sem qualquer rouquidão. De modo que, para ali estavam esquecidos, pendurados em ganchos ferrugentos que lhes denunciavam a idade avançada que já tinham.
Uma grande viola que me disseram mais tarde ser um contrabaixo. Uma viola normal que cheguei a ver o meu pai tocar uma ou duas vezes antes de se lhe ir embora a força e a vontade... Uma guitarra e ainda um banjo que ele mais tarde haveria de vender a um ferro-velho que lhe não largava a porta à cata de tesouros deste e outros calibres como foi o caso do velhinho relógio da sala que cantava às meias e às horas certas.
Tiveram o seu tempo de glórias quando em serões se entretinham a tocar e a fazer ensaios para outras festas tão diferentes das de agora. Sim, porque se faziam festas rijas naquele tempo e até bailaricos de vez em quando. Diz que por alturas do carnaval até se faziam dois, ao despique, na nossa terra. Imagine-se! Ainda há pouco tempo o Acácio que já contou sete décadas, me disse que quando era garoto bem pequeno, andava numa correria povo abaixo e povo acima, a espreitar entre um e outro para levar e trazer informações aos que o mandavam, por via de se ver quem é que tinha o baile melhor, mais concorrido e animado. Isso é que havia gente com fartura na aldeia desses tempos, caramba!
Ou, também, se se desse o caso de simplesmente lhes apetecer estar ali entretidos a gastar o tempo porque nenhum aparelho moderno ainda por inventar, a tratar disso. É o caso destes dois aqui numa destas fotografias do baú lá de casa, onde tio (Tio Firmino) e este outro sobrinho seu chamado Virgílio, que estudava para ser advogado em Lisboa mas que o visitava de vez em quando, dedilham cada um na sua guitarra, sentados em redor da mesa de jantar. Na outra para além de uma viola há também um tocador de concertina, ambos sentados e rodeados de gente que os escuta com alegria e devoção, num qualquer dia de festa, ou então não. Apenas um dia de domingo em que alguém se lembrou de ali fazer acontecer uns instantes de animação, talvez para aliviar da rudeza dos outros dias.
Hoje já lá não mora qualquer instrumento de cordas, mas na minha memória ainda lá estão todos. Continuam intactos e mudos, a atravessarem a eternidade da minha existência...
Cleo



 

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