sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Pela tardinha, gostava de se sentar no telhado


Pela tardinha, gostava de se sentar no telhado de lajes ainda quentes do sol da tarde, que nos aquecia o corpo e a alma. Estava sempre a remendar qualquer coisa. Geralmente eram chapões de remendos nas calças do meu avô, que colocava em cima de outros, que, por sua vez, se tinham já rompido pelo uso demasiado. Quando já não havia as calças do avô, uns pontos num buraquito do avental que esgaçou, ou a pregar uns colchetes novos na saia de vestir ao domingo. O que importava mesmo, era estar entretida com alguma coisa. Outras vezes também me fazia tranças no cabelo. Nunca só duas. Fazia-me sempre três ou quatro a garantir a solidez das mesmas, porque a força da grossura a desfazer tudo num instante quando apenas duas... Pouco me lembro do que falávamos nesses saborosos bocados de vida só nossos, enquanto lhe enfiava as agulhas que ela me pedia, por causa dos olhos que se lhe arrasavam de água e a impediam de ver o buraco minúsculo da agulha. Também nos ouviam as sonoras gargalhadas que ecoavam na parede da casa ao lado, porque uma chalaça ou uma anedota... Mas eram de certeza as histórias de tempos muito antigos que falavam de lobos e de crianças que guardavam rebanhos sozinhas no cume da serra. Essas, estavam sempre presentes. Porque, por norma, havia sempre um ou dois lobos famintos que apareciam na história, para lhes levarem um cordeiro ou até mesmo uma ovelha. E eu, sentada ao seu lado, vibrava de emoção como se as ouvisse sempre pela primeira vez! Lembro-me de uma que me marcou mais do que as outras. Contava que, certa vez, era ela ainda pequena e lá na serra da Deguimbra para onde levara o rebanho a pastar nos matos, deveria ser perto do meio dia quando, subitamente, escureceu como se fosse noite e os animais se foram deitar ao seu lado, apaziguando-lhe o pavor que sentia. Ao contar-me aquilo, e passados tantos anos, ainda não sabia a explicação para o que lhe tinha acontecido. Diz que foi um mistério... Ora, nos dias de hoje todos sabemos que se tratou de um eclipse total do sol, mas a minha avó, que muito provavelmente foi testemunha de um fenómeno raro da natureza, viveu e morreu sem o saber. Se calhar, também pouco ou nada importaria a não ser pelo instante de medo que lhe provocou. As coisas têm a importância que têm, mediante o valor que se lhes atribui e a época em que ocorrem...

Cleo

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