quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Do pouco que me lembro dele


Do pouco que me lembro dele, vem-me à lembrança o cigarrito ao canto da boca que fazia de restos de tabaco aproveitado de beatas que vinham de Lisboa... Uma encomenda de vez em quando que a Ti Isaura que morava na rua da Achada e trabalhava numa perfumaria da baixa, nos enviava. Que excitação!! O que seria que lá vinha desta vez? Uma camisola de lã ou um robe enramado e fofo como o outro da daquela vez? E se fosse uma boneca?(a boneca chegou mais tarde e era das grandes! Ainda lá está hoje, com o vestido do baptizado da minha irmã, sentada numa cama, à nossa espera). E lá dentro, além das amostras de perfumes que cheiravam àquilo que julgávamos ser o aroma da cidade, caixinhas de plástico redondas com desenhos dourados e com um espelhozito na parte de dentro da tampa e na outra parte o pó de arroz cor de tijolo, uma manada de ganchos envernizados que nos davam um jeitão para segurar o cabelo de modo a não estorvar nos olhos e às vezes também de outros, que, depois de postos, pareciam fivelas doiradas a enfeitarem a cabeça. De maneira que, ao lado dessas coisinhas mimosas e pouco habituais na rudeza da aldeia, vinha também um saco de beatas para matar o vício do meu avô! Tal como me lembro de tantas coisas da minha avó, também parece que o estou a ver a ele, a tirar a carta das mortalhas do bolso das calças, com mais remendos do que calças, e a deitar-lhe o tabaquito. Enrolava-o nos dedos e um fósforo a riscar uma faísca na caixa... Outras vezes, encontrava-o de enxada ao ombro (a minha mãe dizia que, descalço, embora disso não tenha lembrança) no regresso do lusco-fusco, com o cigarrito ao canto da boca, a dizer-me qualquer coisa como daquela vez que me revelou ter encontrado um ninho de melro com três ovos lá dentro, ao mesmo tempo que me mostrava o tamanho dos ovos no dedo indicador(olha que são deste tamanho assim). Haveria de o encontrar pela última vez a minha mãe, quando, no dia seguinte de manhã, a caminho da "Despresos"... Lá estava ele, inerte, caído na lisura das lajes frias da "miséria"(nunca o nome de um lugar me fez tanto sentido), perto do poiso onde se costumava encostar a descansar um bocadinho porque a lonjura do caminho a tornar mais pesado o molho de mato que trazia às costas, mas que nem chegava a largar por não valer a pena pelo tempo que era.... Dizia. Deu-lhe um ataque. Naquele tempo havia muita gente a falecer por causa dos ataques. Diz que a carne de porco... Salgada... Bem que lá fui à cata do ninho, na tal parede do "Covão", onde ele me disse que estava, mas do ninho nem sinal e ele já sem me poder elucidar do sítio exacto...

 Cleo

2 comentários:

  1. "à cata do ninho"
    O seu post trouxe-me uma memória. Era o ano de 1948. O António, filho do sapateiro da aldeia, ia partir no dia seguinte para o Brasil com o irmão e os pais. Ele sabia de um ninho de rola e até me indicou o local. Fui à cata dele, mas não o encontrei… A família não voltou mais a Portugal...

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    1. Há coisas que nos deixam sem palavras... Quem nos haveria de dizer, que tantos anos volvidos e embora as duas situações se tenham passado em épocas distintas(a minha foi na véspera da morte do meu avô e teria eu uns cinco anos de idade, ali pelo ano de 1970), nos haveríamos de cruzar numa realidade alternativa e teríamos uma estória idêntica para partilhar! Muito curioso e interessante, digno de ser estudado por quem se dedicar a estudar matérias deste calibre. :)
      Bem haja e obrigada pela leitura e partilha de sentimento em relação à sua memória.

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