domingo, 26 de abril de 2020

Um não sei quê que a inquietava


Um não sei quê que a inquietava, porque as suas mãos a não estarem sossegadas. Sempre a ajeitarem a dobra do lençol, a alisarem o que já estava liso... Talvez fossem os pés frios, visto a botija da água quente que a nora lhe trouxera antes de ir para a luta da fazenda, já se calhar fria... Ou se calhar o silêncio. Ou se calhar o barulho dos girassóis ao cimo do quintal a mudarem de direcção, pois que o sol num constante desassossego sempre a rodar! O olhar fixo no vazio do quarto minúsculo, com aqueles olhos cor do mar que nunca vira, brilhantes de gastos, a vasculharem o esconderijo onde se amontoavam os dias iguais. Talvez à procura de uma razão que justificasse aquela sua inquietação. Ao ver-me ali sem me esperar, um contentamento a encher-lhe o rosto de felicidade. E pediu-me que me sentasse um bocadinho na borda da cama, visto o filho, sempre cheio de afazeres, nunca ter vagar... E falou-me de coisas que lhe vinham à memória, a evocar uma infância descalça que a sorte lhe dera. Contou-me um punhado de estórias de um outro tempo distante, mas que a memória guardara cheias de pormenores... Contou-me do parto de dois dias que lhe calhara pelo natal, que lhe haveria de trazer dois gémeos(um rapaz e uma rapariga), mas também do trauma que lhe deixara por ser preciso um médico e ele lá tão longe, para as bandas de Côja e a ter de se ir chamar, de burro... E ainda criança, aquando da sementeira do chão grande da "Despresos", da fúria repentina que cegou o pai por instantes, irado por qualquer coisa que não correu de feição e lhe atribuiu a culpa, atirando-lhe de imediato com o que tinha na mão pelo lombo acima e que quase lhe quebrara a espinha. Era o ancinho que servia para esventrar a terra, que por sorte caiu bem... Caiu de costas nas suas costas. Agora se fosse ao contrário, é que seria uma verdadeira desgraça! Reparei que as suas mãos se tinham quedado, com os polegares delicadamente encostados um ao outro, em cima da dobra do lençol. E enquanto falava, o seu rosto sorria-me com os olhos, num agradecimento sem fim.

 Cleo

Sem comentários:

Enviar um comentário