sexta-feira, 1 de março de 2019
Naquele tempo ía-se a pé
Naquele tempo ía-se a pé pelos carreiros abaixo até à Benfeita e depois subia-se a ladeira toda até ao cimo de tudo a caminho da escola que estava sentada no alto do outeiro, virada de frente para o Pai das Donas. Passava-se à porta dos irmãos sapateiros, sempre na sua faina a coser cabedal e a colar palmilhas, a martelar e a remendar meias-solas de botas que chegavam a ir lá parar por mais de duas ou três vezes antes de ficarem sem préstimo nenhum. O cheiro a cabedal espalhava-se pela rua e só na curva da casa de outros irmãos, também dois, é que deixava de se sentir. Chamavam-lhe "malucos" por não serem muito sociáveis e passarem a vida em casa, onde, por vezes, se assomavam a uma das janelas altas a ver quem passava na calçada lá em baixo. Em tempos viviam com a mãe, mas desde que ela morrera que passaram a viver sozinhos. Pouco mais se sabia daquelas estranhas criaturas. Dali até ao "Quintal" era um saltinho, um carreirito ali à direita e de vez em quando, no regresso da escola, vinhamos por lá por via de ver quem por ali estava a dar à língua. E uma mão cheia de gente a animar o "Quintal" com as suas conversas cheias de entusiasmo e as gargalhadas a encher os rostos de sorrisos e alegria e a esquecerem-se dos cansaços do corpo... Um pouco mais acima, lá estava o papagaio da D. Ilda a dizer-nos "Olá!" ou então outras coisas menos dignas que a rapaziada lhe costumava ensinar... Lá mais para cima, outro "fantasma" debruçado na janela de correr, olhava o movimento da canalha que por ali passava àquela hora. Duas ou três vizinhas conversavam entre esquinas e o "Rusga" preparava-se para fazer a sua volta do costume. Uma pasta de madeira na mão, que em certa ocasião encomendara ao meu pai e ele fizera com toda a sua perfeição de minúcias, enchendo-a de compartimentos vários, onde o pincel, o sabão, a navalha, a tesoura, cada um no seu devido lugar. Boina espanhola enterrada na cabeça e lá ía ele a manquejar rua abaixo. Talvez fosse até às Luadas ou aos Pardieiros, à Dreia ou Deflores, onde tinha a clientela de guedelhas grandes à sua espera. Chegado lá, uma cadeira era tudo o que precisava para montar o seu salão. Tanto podia ser num pátio, como numa garagem ou até no meio do largo da terra. Na minha, era na oficina do meu pai, onde cabelos se íam misturando nas aparas da madeira...
Cleo
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