terça-feira, 6 de junho de 2023



Do outro lado do tempo, há rostos que não se apagam a viverem em sítios nossos, que, para nós, permanecem intocáveis.

Se fecharmos os olhos, conseguimos vê-los a sorrirem-nos enquanto por eles passamos ao sabor das imagens que nos vão surgindo da cassete onde os guardámos. Porque presos a memórais a inundarem-nos os lugares onde sempre estavam, de momentos imortais a segurarem-se ao tempo que conseguimos manter em suspenso, como este que agora me aflora ao pensamento. E de repente, ali está ela, sentada naquela soleira, a ajeitar o lenço que lhe descaíra da cabeça, enquanto descansa do molho de mato que ali a trouxera...

Apalpa a travessa que lhe segura o carrapito e penteia os cabelos da frente que se esgueiraram antes de voltar a pôr o lenço como deve ser.

São instantes imorríveis, a vaguearem ao sabor do pensamento e revividos vezes e vezes sem conta. Mas que, por precaução e para que continuem vivos enquanto nós também vivermos, o melhor é deitá-los ao papel em palavras antes que o tempo resolva apagá-los...


Cleo 


Foto - Duas irmãs(algures ali entre a segunda metade dos anos 40 e a primeira dos anos 50), uma delas com o seu bebé ao colo (chamava-se Vítor - já falecido também), num tempo muito anterior ao das minhas lembranças, mas cuja soleira da porta a servir de palco a ambos os instantes, tanto o da foto como o que descrevi no texto. 🙃😍




 

quinta-feira, 1 de junho de 2023


 Nunca tive grandes brinquedos e a minha irmã também não. No entanto nada nos impedia de ir para a rua e chapinhar à vontade nas poças da água deixadas pela chuva. Lembro-me de uma vez estar a chover uma daquelas chuvas certinhas, sem vento nenhum e que molham a valer, e num repente, ir a correr até à rua porque me apeteceu apanhar uma molha. Assim, só porque sim! E o que senti é absolutamente indizível... A sensação de se estar molhado até aos ossos por prazer, não tem forma de se descrever.

Também costumava ir até à "Eira Cabeça" só para poder andar a correr à volta da eira de cimento onde se malhava o centeio, que, para mim, era o mais parecido com o terraço que não tinha. Não assim tão largo como aquele, onde os meus amigos de Lisboa costumavam até andar com os seus triciclos e bicicletas. Eu, como não tinha, corria em toda a volta até me cansar ou a cabeça me começar a andar à roda e me entontecer. Sentava-me até passar e voltava ao início. Não me vinha embora sem ir assustar os gafanhotos bebés que estavam ali mesmo ao lado, nas ervas secas e nos restos de palhas como se aquilo fosse uma creche de gafanhotos. Assim que me chegasse ao pé e batesse as palmas, era uma chuva deles a saltarem de um lado para o outro, aflitos de medo...
Na volta, parava junto aos currais onde antes havia uma cerejeira preta enorme e punha-me a dizer uma palavra qualquer para lhe ouvir o eco que fazia na parede da garagem do Custódio. De maneira que lá tinha de dizer aquela ladaínha que tanto adorava ouvir de volta - "Ó que eco que aqui há! Que eco é? É o eco que há cá. O quê, há eco aqui? Há cá eco há!" - Que coisa aquela, tão boa! E seguia o caminho a correr despreocupada e de coração cheio.
E se isto não é felicidade, então não sei o que esta poderá ser. Deve ser por isso que, quando digo que tive uma infância feliz, é porque estas pequenas coisas se sobrepõem a outras menos boas, mas que reportando à época, era o normal do viver de então. Todas as crianças da aldeia eram do mesmo nível de abastança e uns mais castigados do que outros, ou porque eram obrigados a trabalhar mais para ajudar em casa, ou porque não tinham liberdade para poder simplesmente ir brincar com os outros na rua quando lhes apetecia, a sorte não era desigual porque se equilibrava entre umas e outras coisas de maior ou menor importância para cada um de nós.
Já outros, noutra época mais distante e que tiveram inícios de vida bem diferentes porque de famílias com certas posses e outras importâncias como se pode ver no retrato destes irmãos, mas que histórias contadas em surdina, a lembrarem da desgraça que lhes haveria de trocar as voltas e a terem de passar a viver como os outros. A terem vidas de escravatura por via do cultivo das terras por conta deles próprios, de ferramentas em punho e calos nas mãos àperas porque a barriga a não se compadecer, e de modo que a ter de se comer todos os dias.
E estes a parecer-me que não foram felizes, tirando uma que não aparece no retrato... Essa sim, apesar das limitações, nunca se importou com a "boca do povo" e julgo que soube ser feliz enquanto pôde.

Cleo

Foto - Lídia e Leopoldino, dois irmãos que paecem dois príncipes 😍
Todas a

terça-feira, 30 de maio de 2023


Se ao tempo eu perguntasse
De quanto iria precisar
Para um bilhete poder comprar
Que àquele tempo me levasse
Daria toda a minha fortuna
Para àquele instante voltar
Voltar a ser esta pequena
Com a inocência no olhar
Quanto valerá uma viagem
Que só o tempo pode dar?
Não me faltaria a coragem
De nas suas asas voar!
O cão de contente a ladrar
E o primo Campos a falar
O Paulo ao pé de mim a olhar
E o lugar já lá tão longe de se chegar...

Cleo

Foto. Uma cena de um dia invulgar, porque não era todos os dias que ali os encontrava, os que ali estão... Deveria ser pelo natal , porque o primo Campo
s de casaco de cabedal e mãos nos bolsos. O meu amigo Paulo, de calças de bombazine e eu de camisola de lã por cima do vestido. ☺️

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Do armário embutido na parede do quarto que era o nosso, ou seja da minha irmã e meu, gritos mudos de instrumentos de cordas laças que há muito não viam dedos que as tocassem. Ou que, em minúcias de artista, as afinassem a preceito até que gemessem em crescendo, desde o "Dó" até ao "Si", cada uma das notas sem qualquer rouquidão. De modo que, para ali estavam esquecidos, pendurados em ganchos ferrugentos que lhes denunciavam a idade avançada que já tinham.
Uma grande viola que me disseram mais tarde ser um contrabaixo. Uma viola normal que cheguei a ver o meu pai tocar uma ou duas vezes antes de se lhe ir embora a força e a vontade... Uma guitarra e ainda um banjo que ele mais tarde haveria de vender a um ferro-velho que lhe não largava a porta à cata de tesouros deste e outros calibres como foi o caso do velhinho relógio da sala que cantava às meias e às horas certas.
Tiveram o seu tempo de glórias quando em serões se entretinham a tocar e a fazer ensaios para outras festas tão diferentes das de agora. Sim, porque se faziam festas rijas naquele tempo e até bailaricos de vez em quando. Diz que por alturas do carnaval até se faziam dois, ao despique, na nossa terra. Imagine-se! Ainda há pouco tempo o Acácio que já contou sete décadas, me disse que quando era garoto bem pequeno, andava numa correria povo abaixo e povo acima, a espreitar entre um e outro para levar e trazer informações aos que o mandavam, por via de se ver quem é que tinha o baile melhor, mais concorrido e animado. Isso é que havia gente com fartura na aldeia desses tempos, caramba!
Ou, também, se se desse o caso de simplesmente lhes apetecer estar ali entretidos a gastar o tempo porque nenhum aparelho moderno ainda por inventar, a tratar disso. É o caso destes dois aqui numa destas fotografias do baú lá de casa, onde tio (Tio Firmino) e este outro sobrinho seu chamado Virgílio, que estudava para ser advogado em Lisboa mas que o visitava de vez em quando, dedilham cada um na sua guitarra, sentados em redor da mesa de jantar. Na outra para além de uma viola há também um tocador de concertina, ambos sentados e rodeados de gente que os escuta com alegria e devoção, num qualquer dia de festa, ou então não. Apenas um dia de domingo em que alguém se lembrou de ali fazer acontecer uns instantes de animação, talvez para aliviar da rudeza dos outros dias.
Hoje já lá não mora qualquer instrumento de cordas, mas na minha memória ainda lá estão todos. Continuam intactos e mudos, a atravessarem a eternidade da minha existência...
Cleo



 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

 


Na casa da minha avó, para onde costumava ir quando pequena e adorava, havia na salita, para além da mesa com as quatro cadeiras cheias de caruncho e enegrecidas pelo fumo da fogueira que enchia a casa toda sempre que os gravetos ainda verdes ou a lenha molhada, havia também uma cómoda com gavetas empenadas que eu me fartava de puxar nos puxadores redondos também de madeira, mas elas a não quererem abrir-se. E, portanto, como a minha força não permitia mais do que uma pequena fresta de um dos lados apesar dos muitos safanões investidos, porque o outro pregado e sem se mover um milímetro! Era pois, por ali que eu espreitava lá para dentro e pescava um ou outro tesouro que ela ali tinha escondido, na escuridão daquele lugar onde coisas esquecidas e difíceis de encontrar... Com a minha pequenita mão lá metida mas sem a poder mover, era com a ponta dos dedos contra a madeira e fazendo com que deslizassem até lhes ver uma ponta e depois a puxar para fora.

Algumas, eram as cartas que o meu pai lhe enviara dez anos antes, de quando trabalhava e morava em Lisboa. Amarelecidas, ainda com selos e carimbos por cima. As letras, desenhadas, não as sabia ler ainda mas a minha avó, analfabeta, já as tinha dado a ler a quem sabia e até pedido à mesma pessoa para lhes responder, cada uma por sua vez, muito antes de as guardar naquele jazigo empenado. Notícias da época a darem conta das preocupações de então.

Uma criança que existia e que não aparecia para ver a avó apesar desta cheia de saudades... Uma ovelha que estaria doente e a não comer nada, E até as oliveiras a prometerem pouco azeite naquele ano... Coisas banais, portanto, talvez até de somenos importância só para encherem o papel. Sei porque as li mais tarde, quando já havia aprendido a juntar as letras com a professora Fernanda na escola da Benfeita.

Cleo

quinta-feira, 6 de abril de 2023



Se fechar os olhos por momentos consigo voltar lá. E volto áquele tempo em que o tempo ainda não contava para nada que fosse mais importante do que a hora em que davam os desenhos animados na televisão que era e foi a preto e branco e que por aquelas alturas estava em cima da cómoda do quarto deles e que eu costumava ver sentada aos pés da cama. Isto por causa de ser curta de vista e não conseguir ler as legendas sem ser ao perto e que estava sempre a ouvir que era um vício...
E lá está a minha mãe na "casa de lá" (assim se chamava porque embora fosse de paredes meias com a de cá, em tempos nem porta por dentro tinha e era preciso ir pelo lado de fora o que era uma chatice se calhasse estar a chover e a ser preciso ir à adega encher a garrafita do vinho pró almoço ou a ter de passar pelo pátio para se entrar na parte de cima. De maneira que, já muito mais tarde, o quarto da minha avó a deixar de existir e ali se fazer a lareira e, claro, se terem mudado para lá os sofás da sala) em dia de se cozer a broa, a peneirar a farinha de milho com a tampa da arca aberta, numa rapidez de solavancos curtos, para lá e para cá, enquanto uma chuva de farinha a cair no castanho da  gamela de amassar a broa. E nesse tempo o forno já construído no lugar onde antes tinha sido a retrete e da qual ainda me lembro tão bem porque numa dor de barriga a ter de me sentar naquele assustador buraco redondo ao qual se retirava uma rodela de madeira que o cobria de dignidade.


 

quarta-feira, 5 de abril de 2023


Por alturas da Páscoa para além das coisitas do costume que se traziam da mercearia do Ti Adelino ali à "poça" ou da de lá da rua do fundo, a do Ti Cruz, uma massita, um cartuxozito com duzentas e cinquenta gramas de café de cevada mais outro igual de açúcar amarelo(embolaricado), uma ou duas caixitas de fósforos para acender o lume, meio litro de petróleo para prevenir o candeeiro porque a electricidade a não se aguentar em noites de tempestade e, por vezes, a parecer inverno e a gente já na Páscoa, vinha ainda uma barra de sabão amarelo porque a não tardar nada e a ser Domingo de Páscoa. E, como é sabido, no Domingo de Páscoa a ter de se abrir a porta ao padre e a toda aquela comitiva que se fazia anunciar com uma sineta. E esta a tocar cada vez mais perto à medida que iam entrando e saindo das casas e se iam aproximando da nossa, em virtude da cruz do Senhor a carecer de ser beijada por toda a gente, bem como as casas a necessitarem de serem benzidas visto que todas naquele dia num brinco... 
Para além, é claro, da oferta do folar ao padre em cima da toalhita de renda na mesa, ao pé da jarrinha de crisântemos e hortenses, porque assim tudo a parecer tão bem! 
De modo que, uma nota de cem(ou seria de quinhentos?) dentro de um pires, um queijito de ovelha (que era de imediato arrecadado no cesto trazido para o efeito) e, uns quantos cálices junto da garrafa de vidro trabalhado e com tampa igualmente de vidro, que continha aguardente no interior ou que também poderia ser licor de ginja, que se consumiam na hora acabando com um "Ah!..." de satisfação no fim.
Portanto, antes disto tudo ainda era preciso lavar a casa como devia ser e daí o sabão amarelo a ser tão precioso, porque mais nada a deixar o soalho amarelinho como ele. 
O sobrado de tábuas corridas, no caso de estar encerado, a ter de se esfregar todo primeiro com o esfregão de arame grosso e só depois a passar-lhe o pano encharcado e a seguir o sabão, a ensaboar em círculos com a escova de piassaba e a força dos braços e outra vez o pano encharcado a fazer desaparecer o sujo e a deixar um cheirinho a lavado por toda a casa. Quartos, sala, corredor e escadas. Tudo de joelhos no chão como que a cumprir uma penitência. Depois era só voltar a espalhar cera daquela que vinha em pacotes cor de laranja, esperar que secasse para lhe dar o lustro e, tudo outra vez numa penitência de joelhos doridos... Mas, em certos casos em que não havia qualquer torneira em casa, ainda a ser preciso ir buscar a água primeiro, em bilhas de barro ou cântaras de zinco, que, mais tarde, já eram só cântaros azuis de plástico, muito mais leves de trazer à cabeça empoleirados nas rodilhas das mulheres.

Cleo


 

segunda-feira, 3 de abril de 2023


Tudo servia para enfeitar o ramo de loureiro que a missa do Domingo de
Ramos pedia. As camélias encarnadas, cuidadosamente presas, com um fio de atar chouriças por entre as folhas. As serpentinas coloridas que sobravam do carnaval, enroladas em toda a volta e as tangerinas penduradas aqui e
ali, faziam-nos brilhar os olhos de alegria.
Por todo o caminho, pinhal abaixo, até á Benfeita, onde, no adro da igreja, já outros da terra que abalavam primeiro e de todas as outras terras da freguesia, também eles, inchados de orgulho e com os olhos a brilhar de tanta emoção pela beleza da sua obra. Seguravam com ambas as mãos, o mais aprumado que
conseguiam, o seu maravilhoso ramo.
Havia ainda aqueles, que, movidos pelo entusiasmo, gostavam de dar nas vistas e elevavam ao exagero o símbolo da missa do dia (que era também a única a que assistiam durante o ano) De modo que, só dobrando a ponta do loureiro inteiro que exibiam, o conseguiriam enfiar dentro da igreja...! O padre, claro, não achava piada nenhuma.🤩🤣😝


 

terça-feira, 28 de março de 2023


Lembro-me da figueira com dois ou três figos que ninguém comia (talvez por dó ou respeito à sua velhice, não sei) na ponta de um ramo tísico, amarelado de icterícia. Costumava subir por ela acima, para espreitar o que se escondia por detrás do muro alto do outro lado da rua. Um muro que afinal não o era assim tanto como parecia. Mas, é claro, quando somos pequenos, todos os muros nos parecem altos! O muro era assustador visto que, no cimo arredondado, cacos de vidros espetados, me impediam de o tentar saltar até em pensamento...
Um pedaço de terra abandonado, umas flores entristecidas de sede e uma casa caiada de portas e janelas fechadas, com uma varanda a dar para o quintal onde uma macieira bravo-esmolfe gigante a afrontar-lhe as vistas, era tudo o que havia para lá do muro. Duas vezes por ano um casal de meia-idade a chegar num carro de praça. O homem, todo ele suspensórios que lhe seguravam as calças de quando tinha sido gordo e agora um verdadeiro palito. A mulher, uma doçura de pessoa de quem eu gostava imenso e que nos tricotava sapatos de dormir e gorros de lã com uma bolazita na ponta, que nos agasalhavam os pés e a cabeça quando os rigores do inverno apertavam e nos enregelavam até aos ossos.
Abriam o portão que chiava, também ele, certamente, perro do reumático e falta de uso, e desapareciam por detrás do muro.
No dia seguinte começava a faina de duas ou três semanas no amanho dos quintais. O corte das ervas longas e das silvas, o esbordinhar para que as bordas ajetadinhas e a parecerem bem. E tudo aquilo a culminar com a sementeira das batatas que todos os anos se fazia (e que anos mais tarde: vá, vamos lá que isto é uma pressa!.. E já quase noite e nós ali a esconder a semente nos regos, a despejar-lhe o adubo, a puxar o raspão com a enxada e a cavar-lhe a terra para de cima) e que, com sorte, talvez dessem para o adubo… Sem água e cuidados, não há renovo que vingue. De tal modo que, meses mais tarde umas batatitas miúdas a verem a luz do dia.


 

quinta-feira, 23 de março de 2023


 Em dia de missa dominical as pessoas a chegarem de todos os lados, pelos atalhos por meio de pinhais que encurtavam o caminho. E mulheres descalças a passarem os pés pela bica da fonte das moscas antes de calçarem as meias de vidro e os sapatos que levavam num saco de plástico...

Terminada a missa e ouvidos os últimos recados do prior, uma última benzedura e todos a sairem ordeiramente da igreja para dar início às saudações de apertos de mão, abraços ou beijinhos conforme as pessoas e o grau de intimidade entre cada qual. As conversas e as gargalhadas a ecoarem ao longe visto que o adro cheio como um ovo e todos a conviverem pom para as mercearias tendo em vista o desejor breves momentos antes de se esgueirare de se aviarem depressa do que lhes era preciso para toda a semana. E aí a saberem das novidades mais ou menos importantes. Era conforme. De modo que, de vez em quando alguém organizava uma excursão a este ao àquele lugar e assim a notícia a espalhar-se depressa por todas as terras da freguesia.

Certa ocasião, os meus pais decidiram ir também num desses passeios de três dias, organizado de modo a visitar alguns dos mais belos lugares do norte do país. De maneira que, a minha mãe a ter de deixar mato e erva com fartura para os animais e uma vizinha das que não íam na excursão, a fazer o favor de lá ir tratar dos animais de manhã e à noite.

Fez também uma carne assada que cortou em fatias, pasteis de bacalhau e cozeu uma fornada de broa. No resto, para aproveitar o calor das brasas, preparou uma caçoila com um coelho e batatas e deitou-a ao forno a assar bem como um frango que teria de sair corado e ainda um tachito de tigelada para ajudar a compôr o farnel que haveria de dar para os tês dias. Umas azeitonas e um queijo de ovelha curado, rematavam o que faltava. E lá fomos nós, no dia da excursão, todos contentes de madrugada, numa boleia na carrinha do Ti Américo, que nos fez o favor de ir levar à Benfeita, onde já estavam outros felizardos, excitados pela aventura prestes a acontecer, também com as suas cestas do farnel ao lado, prontos para entrarem na camioneta que os levaria a conhecer outras terras e lugares diferentes.


A primeira dessas refeições em modo de piquenique foi num pinhal, em virtude de se aproveitar a sombra dos pinheiros. Estenderam-se mantas de trapos e por cima delas toalhas de mesa, que se foi enchendo de coisas daquelas que já vos tinha dito... Adultos e crianças todos sentados em volta da mesa improvisada e toca a comer que o estômago não se compadece com passeios de fazerem bem à alma!!!...

quarta-feira, 22 de março de 2023



Em 1951, a minha mãe tinha 9 anos de idade e vivia com a sua mãe e irmã na terra onde nascera. Murganheira, uma aldeia da freguesia de Pombeiro da Beira, mesmo ao pé do santuário de Santa Quitéria, que, naquele tempo, seria já bastante concorrido por alturas da festa anual.
Como o berço onde nascera era dos mais pobres que se possam imaginar, foi com essa mesma idade que uma prima a levou consigo para Lisboa, com promessas de uma boa casa, para a qual iria servir e ganhar algum dinheiro para ajudar no sustento do lar. Não sem antes disso, ter de trabalhar para essa prima enquanto a dita casa não aparecia... De modo que, contando-me mais tarde quando se proporcionava em conversa, de uma vez, trazia ela uma bilha de leite à cabeça, pesadíssima para o seu tamanho e fraqueza de corpo, e vindo a descer uma rua cravejada de penedos escorregadios e com tão fraco calçado nos pés, estes lhe desandam de tal modo que não teve como se segurar. Nem a ela nem à bilha, caindo ambas desamparadas e a pés juntos, no chão. E o inevitável a acontecer mesmo na frente dos seus olhos impotentes, ao verem derramar-se o leite que, a manchar de branco os penedos lisos da rua e de negro a sua alma em aflição.
Dado que as desculpas não serviriam para a livrar, ainda haveria de levar uma tareia por se ter deixado cair...
Algum tempo depois e tendo já ao seu cuidado várias tarefas domésticas, ao recolher os pratos da mesa dos senhores no final da refeição, tendo estes comido maçãs à sobremesa porque as cascas a regressarem nos pratos e ela a vê-las ali e uma vontade de comer maçã a crecer-lhe na saliva da boca. Mas como as maçãs a não serem para os dentes das criadas, lavou as cascas e estas a saberem-lhe tão bem como se fossem maçãs inteiras!
Mais tarde, depois de tudo já devidamente arrumado e de ter feito um pedaço de renda para a patroa e outro para o seu enxoval, o cansaço a fazer com que adormecesse na água quente da banheira até acordar com ela já fria, no desconforto do corpo gelado.
Houve casas onde havia também crianças de colo a carecerem de quem lhes desse atenção quando os pais não estavam. De quem lhes mudasse a fralda, que nesse tempo eram de pano e lavadas à mão. De quem lhes desse a papinha na boca e colo quando chorassem...
Ao domingo podia sair e ir dar uma volta com alguma amiga, que geralmente eram colegas que a mesma sorte fizera com que se conhecessem no mercado, onde iam comprar as coisas que cozinhavam nas casas onde serviam. Em certa ocasião até foram à Praia das Maçãs. Embora não tivessem fato de banho, nem vestido nem por vestir, não deixaram de tirar um retrato para mais tarde recordar... Lá estão elas a sorrir de contentes, no areal da praia num dia cheio de sol.
Ou então, optava por passar a tarde do mesmo domingo em casa de alguém conhecido, penso que familiar de não sei quem e onde o destino quis que por ironia ou não, viesse ali a conhecer aquele com quem haveria de construir uma nova vida, longe de patrões e senhores cheios de salamaleques e outros tiques burgueses, onde coubesse também a nossa.
A minha vida dava um romance, dizia-me ela. E dava, de facto.
Fim do primeiro capítulo!
Cleo
Foto - O retrato de que falo no texto, na praia das Maçãs ali pelos primeiros anos da década de sessenta do século passado, sendo que as jovens sentadas na areia seriam a minha mãe(à direita) e a sua amiga e colega de então e cujo nome se perdeu na espuma do tempo...

Cleo