Em 1951, a minha mãe tinha 9 anos de idade e vivia com a sua mãe e irmã na terra onde nascera. Murganheira, uma aldeia da freguesia de Pombeiro da Beira, mesmo ao pé do santuário de Santa Quitéria, que, naquele tempo, seria já bastante concorrido por alturas da festa anual.
Como o berço onde nascera era dos mais pobres que se possam imaginar, foi com essa mesma idade que uma prima a levou consigo para Lisboa, com promessas de uma boa casa, para a qual iria servir e ganhar algum dinheiro para ajudar no sustento do lar. Não sem antes disso, ter de trabalhar para essa prima enquanto a dita casa não aparecia... De modo que, contando-me mais tarde quando se proporcionava em conversa, de uma vez, trazia ela uma bilha de leite à cabeça, pesadíssima para o seu tamanho e fraqueza de corpo, e vindo a descer uma rua cravejada de penedos escorregadios e com tão fraco calçado nos pés, estes lhe desandam de tal modo que não teve como se segurar. Nem a ela nem à bilha, caindo ambas desamparadas e a pés juntos, no chão. E o inevitável a acontecer mesmo na frente dos seus olhos impotentes, ao verem derramar-se o leite que, a manchar de branco os penedos lisos da rua e de negro a sua alma em aflição.
Dado que as desculpas não serviriam para a livrar, ainda haveria de levar uma tareia por se ter deixado cair...
Algum tempo depois e tendo já ao seu cuidado várias tarefas domésticas, ao recolher os pratos da mesa dos senhores no final da refeição, tendo estes comido maçãs à sobremesa porque as cascas a regressarem nos pratos e ela a vê-las ali e uma vontade de comer maçã a crecer-lhe na saliva da boca. Mas como as maçãs a não serem para os dentes das criadas, lavou as cascas e estas a saberem-lhe tão bem como se fossem maçãs inteiras!
Mais tarde, depois de tudo já devidamente arrumado e de ter feito um pedaço de renda para a patroa e outro para o seu enxoval, o cansaço a fazer com que adormecesse na água quente da banheira até acordar com ela já fria, no desconforto do corpo gelado.
Houve casas onde havia também crianças de colo a carecerem de quem lhes desse atenção quando os pais não estavam. De quem lhes mudasse a fralda, que nesse tempo eram de pano e lavadas à mão. De quem lhes desse a papinha na boca e colo quando chorassem...
Ao domingo podia sair e ir dar uma volta com alguma amiga, que geralmente eram colegas que a mesma sorte fizera com que se conhecessem no mercado, onde iam comprar as coisas que cozinhavam nas casas onde serviam. Em certa ocasião até foram à Praia das Maçãs. Embora não tivessem fato de banho, nem vestido nem por vestir, não deixaram de tirar um retrato para mais tarde recordar... Lá estão elas a sorrir de contentes, no areal da praia num dia cheio de sol.
Ou então, optava por passar a tarde do mesmo domingo em casa de alguém conhecido, penso que familiar de não sei quem e onde o destino quis que por ironia ou não, viesse ali a conhecer aquele com quem haveria de construir uma nova vida, longe de patrões e senhores cheios de salamaleques e outros tiques burgueses, onde coubesse também a nossa.
A minha vida dava um romance, dizia-me ela. E dava, de facto.
Fim do primeiro capítulo!
Cleo
Foto - O retrato de que falo no texto, na praia das Maçãs ali pelos primeiros anos da década de sessenta do século passado, sendo que as jovens sentadas na areia seriam a minha mãe(à direita) e a sua amiga e colega de então e cujo nome se perdeu na espuma do tempo...
Cleo