sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Dantes era só uma vez por ano


Dantes era só uma vez por ano, mas agora vou lá mais vezes. Normalmente, sempre que necessito de purificar a alma... E volto ao sítio onde as memórias vivem para além do tempo e do espaço que ocupam no meu pensamento. A casa e o quintal, outrora um campo de milho ladeado da horta junto ao muro. As alfaces, os tomates, os pimentos, as ervilhas, as cebolas, os alhos e as cenouras, ocupavam o cimo do terreno onde uma leira de morangos compunham o quadrado dos mimos. E a salsa a espreitar por entre as pedras do muro a dar sabor ao refogado. Ao domingo matava-se um coelho que eu levava dentro dum saco de serapilheira, subia os degraus da escada e batia à porta da casa do vizinho. Tudo por causa da falta de coragem da minha mãe... Dois esticões na espinha e nem um pio. Voltava a metê-lo dentro do saco e trazia-o de volta. Esfolava-o ainda em quente atrás da porta, preso por uma pata a um cordel. Depois, a cebolada a cobri-lo no tacho e o aroma a abrir-nos o apetite! O sino da igreja da Benfeita a anunciar o fim da missa e pouco depois o barulho do triciclo do meu pai a queixar-se da dificuldade da ladeira. A opa branca e encarnada no braço, antes do cabide de madeira dentro do guarda-fatos, as contas dos gastos na mercearia do Ti Artur do correio, os tostões que não batiam certo... Onde foi onde não foi, onde raio se teriam escondido os tostões que não havia maneira de aparecerem, de maneira que, o almoço a tardar porque ninguém almoçava sem as contas darem certo! O Rogério empoleirado na bicicleta, também ela a chiar por causa da maldita ladeira. De tarde deitavam-se as cabras e fazia-se renda para aproveitar o tempo. A prima Zézinha fez umas quantas colchas e toalhas de mesa, a minha mãe fazia naperons que tirava das revistas de lavores e eu ainda cheguei a fazer um também, só que nunca percebi porque encolheu do meio para a frente. De modo que, desgostosa, nunca mais fiz mais nenhum. De vez em quando aparecia a Patrocínia que costumava ser sardinheira mas que também tinha uma retrosaria no andar de baixo da sua casa na Benfeita. E trazia a loja às costas, que montava no meio do largo da capela. Umas colchas, uns lençóis, toalhas variadas em jogos e desemanadas, panos de cozinha, cobertores, tecido para cortinados e vestidos, saias, blusas, aventais, cuecas, meias, collants de vidro e tantas outras tralhas das boas naquela espécie de feira só dela cujas clientes íam aparecendo por força da sua insistência de porta-a-porta. Até parecia mal não se ir lá fazer o jeito de comprar alguma coisinha, quanto mais não fosse, para meter na mala do enxoval da filha ou da neta, onde, afinal, ainda cabia tanta coisa e o artigo que ela vendia era do bom. Daquele que durava uma vida inteira!

 Cleo

Pela tardinha, gostava de se sentar no telhado


Pela tardinha, gostava de se sentar no telhado de lajes ainda quentes do sol da tarde, que nos aquecia o corpo e a alma. Estava sempre a remendar qualquer coisa. Geralmente eram chapões de remendos nas calças do meu avô, que colocava em cima de outros, que, por sua vez, se tinham já rompido pelo uso demasiado. Quando já não havia as calças do avô, uns pontos num buraquito do avental que esgaçou, ou a pregar uns colchetes novos na saia de vestir ao domingo. O que importava mesmo, era estar entretida com alguma coisa. Outras vezes também me fazia tranças no cabelo. Nunca só duas. Fazia-me sempre três ou quatro a garantir a solidez das mesmas, porque a força da grossura a desfazer tudo num instante quando apenas duas... Pouco me lembro do que falávamos nesses saborosos bocados de vida só nossos, enquanto lhe enfiava as agulhas que ela me pedia, por causa dos olhos que se lhe arrasavam de água e a impediam de ver o buraco minúsculo da agulha. Também nos ouviam as sonoras gargalhadas que ecoavam na parede da casa ao lado, porque uma chalaça ou uma anedota... Mas eram de certeza as histórias de tempos muito antigos que falavam de lobos e de crianças que guardavam rebanhos sozinhas no cume da serra. Essas, estavam sempre presentes. Porque, por norma, havia sempre um ou dois lobos famintos que apareciam na história, para lhes levarem um cordeiro ou até mesmo uma ovelha. E eu, sentada ao seu lado, vibrava de emoção como se as ouvisse sempre pela primeira vez! Lembro-me de uma que me marcou mais do que as outras. Contava que, certa vez, era ela ainda pequena e lá na serra da Deguimbra para onde levara o rebanho a pastar nos matos, deveria ser perto do meio dia quando, subitamente, escureceu como se fosse noite e os animais se foram deitar ao seu lado, apaziguando-lhe o pavor que sentia. Ao contar-me aquilo, e passados tantos anos, ainda não sabia a explicação para o que lhe tinha acontecido. Diz que foi um mistério... Ora, nos dias de hoje todos sabemos que se tratou de um eclipse total do sol, mas a minha avó, que muito provavelmente foi testemunha de um fenómeno raro da natureza, viveu e morreu sem o saber. Se calhar, também pouco ou nada importaria a não ser pelo instante de medo que lhe provocou. As coisas têm a importância que têm, mediante o valor que se lhes atribui e a época em que ocorrem...

Cleo

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Do pouco que me lembro dele


Do pouco que me lembro dele, vem-me à lembrança o cigarrito ao canto da boca que fazia de restos de tabaco aproveitado de beatas que vinham de Lisboa... Uma encomenda de vez em quando que a Ti Isaura que morava na rua da Achada e trabalhava numa perfumaria da baixa, nos enviava. Que excitação!! O que seria que lá vinha desta vez? Uma camisola de lã ou um robe enramado e fofo como o outro da daquela vez? E se fosse uma boneca?(a boneca chegou mais tarde e era das grandes! Ainda lá está hoje, com o vestido do baptizado da minha irmã, sentada numa cama, à nossa espera). E lá dentro, além das amostras de perfumes que cheiravam àquilo que julgávamos ser o aroma da cidade, caixinhas de plástico redondas com desenhos dourados e com um espelhozito na parte de dentro da tampa e na outra parte o pó de arroz cor de tijolo, uma manada de ganchos envernizados que nos davam um jeitão para segurar o cabelo de modo a não estorvar nos olhos e às vezes também de outros, que, depois de postos, pareciam fivelas doiradas a enfeitarem a cabeça. De maneira que, ao lado dessas coisinhas mimosas e pouco habituais na rudeza da aldeia, vinha também um saco de beatas para matar o vício do meu avô! Tal como me lembro de tantas coisas da minha avó, também parece que o estou a ver a ele, a tirar a carta das mortalhas do bolso das calças, com mais remendos do que calças, e a deitar-lhe o tabaquito. Enrolava-o nos dedos e um fósforo a riscar uma faísca na caixa... Outras vezes, encontrava-o de enxada ao ombro (a minha mãe dizia que, descalço, embora disso não tenha lembrança) no regresso do lusco-fusco, com o cigarrito ao canto da boca, a dizer-me qualquer coisa como daquela vez que me revelou ter encontrado um ninho de melro com três ovos lá dentro, ao mesmo tempo que me mostrava o tamanho dos ovos no dedo indicador(olha que são deste tamanho assim). Haveria de o encontrar pela última vez a minha mãe, quando, no dia seguinte de manhã, a caminho da "Despresos"... Lá estava ele, inerte, caído na lisura das lajes frias da "miséria"(nunca o nome de um lugar me fez tanto sentido), perto do poiso onde se costumava encostar a descansar um bocadinho porque a lonjura do caminho a tornar mais pesado o molho de mato que trazia às costas, mas que nem chegava a largar por não valer a pena pelo tempo que era.... Dizia. Deu-lhe um ataque. Naquele tempo havia muita gente a falecer por causa dos ataques. Diz que a carne de porco... Salgada... Bem que lá fui à cata do ninho, na tal parede do "Covão", onde ele me disse que estava, mas do ninho nem sinal e ele já sem me poder elucidar do sítio exacto...

 Cleo

Antigamente, o largo era o centro do mundo!


Antigamente, o largo era o centro do mundo! Do mundo que me rodeava e onde se passava quase tudo o que fosse importante! As pessoas que se ali juntavam por causa da carreira das Quintas, porque nesse dia o pretexto da feira de Arganil. E, já se sabe, há sempre coisas a fazerem falta. De maneira que, um molho de couves ou de cebolo, uns pitos, uns chicharros ou umas sardinhas e uma peça de pano para mandar fazer uma blusa ou uma saia... A carreira a chegar e as pessoas em sentido a assistirem às manobras complicadas do motorista para lhe dar a volta, mesmo já com o muro da quelhada do primo Zé, só por metade, porque assim a carreira a chegar-se mais à frente e a facilitar a manobra. No tempo em que não tinha, ainda, muito mais que fazer, gostava de ir até lá, porque mesmo em frente ao sino da capela, uma escadaria que me parecia enorme, com um corrimão que eu gostava de montar e me deixar escorregar por ali abaixo. Voltava a subir e vir no escorrega um monte de vezes até me cansar. Lembro-me de alguém me ter emprestado uma bola que saltava bem e com ela inventar um jogo de arremessoas à parede dessa escadaria, sem a deixar cair ao chão, porque se isso acontecesse, perdia... Á noitinha era o sítio onde mais gente se cruzava. Uns porque vinham de um lado, outros porque vinham do outro e aqueles que, não vindo de lado nenhum, mas porque ouviam a falaça, ali se chegavam para ajudar à festa. E também a própria da festa que era ali que se fazia. Um palco de madeira com umas tábuas pregadas e uns ramos de castanheiro a enfeitar e estava pronto para os tocadores que abrilhantavam o arraial. Mas antes, a aparelhagem com o sonoro a entornar música das cassetes, em altos berros, que se ouvia na Benfeita e até nos Pardieiros. Os rapazes nas suas bicicletas, a organizarem corridas que incluíam uma subida até ao Oiteiro. Davam balanço na pequena descida à casa do primo Antonino até à da prima Lucinda e dali para cima era sempre a pedalar com força. O pior era a curva logo a seguir ao tanque de lavar. Perdiam balanço e muitas vezes não conseguiam passar da casa do Urbano... No natal, era ali que também se fazia "a trugada". Um monte de cepas que se íam buscar ao pinhal, a fazerem um braseiro incandescente para aquecer quem dali se abeirasse para o convívio da tradição. E aquilo dava até ao Ano Novo! Gente que chegava de Lisboa, a sairem dos automóveis e a virem cumprimentar os do ano todo que por ali estivessem. Outros a irem já de regresso e a despedirem-se dos mesmos do ano todo, com promessas de que voltariam para o ano... Tudo isto e muito mais se passava ali, no largo da capela, o centro do mundo!

 Cleo

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Hoje, sem se saber porquê,


Hoje, sem se saber porquê, vieram-me à ideia aquelas tabletes da Regina(não da Regina mesmo, porque ainda não conhecia nessa época nenhuma Regina, só muito mais tarde e essa Regina ao pé da gente na pensão da R. Heliodoro Salgado por via de ter de tratar dos papéis dela no departamento da emigração porque lá no Canadá a exigirem-lhos, e sem qualquer chocolate dela... Mas do nome da marca que traziam escrito na prata:"Regina")de chocolate fininhos com recheio branco por dentro, a saberem a frutas e que, de vez em quando me apareciam na mão, em resultado de um furo no cartão a prometer doces desejos em cima do balcão da mercearia, ou oferecidos por alguém a sorrir e a recomendar: "toma lá, mas divide ao meio com a tua irmã"! De modo que, para uma justa divisão, ía-se buscar o metro de esticar e encolher que o meu pai usava para fazer as medições dos centímetros nas tábuas e que riscava aqui e ali com o coto de lápis que retirava da orelha, antes de as serrar pelo risco com precisão,no disco da máquina barulhenta. De maneira que, encostava-se o metro ao chocolatezito, fazendo com a unha uma marca na moleza da prata, naquele ponto que era, com a apurada exactidão dos risquinhos negros no amarelo do metro, o meio por onde se deveria cortar com a faca. Ou, na falta dela e não se podendo deixar de comer tal guloseima, partia-se mesmo com a mão deixando o recheio todo à vista, o que aumentava a quantidade de saliva na boca e, logo a seguir, a chatice dos dedos muito mais pegajosos!... 

 Cleo

Recordando algumas estórias


Recordando algumas estórias que costumava ouvir, quando, em pequena, por ali andava entretida com alguma coisita, como por exemplo com aquele ferro grosso em formato de "U", que era um íman e com o qual esgravatava nas aparas e na serradura, em busca de pregos pequenos que se tinham sumido por terem caído dos dedos antes do martelo lhes acertar. E eu toda contente de cada vez que o íman com um, dois ou três preguitos de uma vez agarrados à ponta. Ficava aos cuidados do meu pai enquanto a minha mãe se ocupava dos trabalhos agrícolas da fazenda e eu ainda demasiado pequena para a acompanhar. Do que me recordo, aquilo era uma animação. Sempre com alguém lá dentro a falar com o meu pai e a rirem-se disto e daquilo. Gente, que, ao passar na rua a aproveitar e a entrar para conversar também com quem já lá estava. E sabendo que ali, uma salamandra a deitar calor, nada melhor para se aquecerem os pés e as mãos porque de inverno, aquilo na serra não é para brincadeiras! A acompanhar, um bom pedaço de conversa, animada ou séria, mais uma estória ou uma anedota, uma quadra ao despique com o carteiro... ou até mesmo opinando sobre o estado da política e do próprio do estado. Era conforme o lado para onde pendesse o tema. Daí a um pouco, a oferta do mata-bicho do costume e de maneira que, a abalarem para adega ali logo ao lado por causa de aquecerem o corpo por dentro... Um dos convivas habituais era o primo Américo, nosso vizinho da casa ao lado, que, vindo do galinheiro ou da ordenha das cabritas, com o caldeiro do leite na mão, nunca ali passava sem empurrar a porta e dizer: Bom dia! Daí a nada, talvez a Lídia a fazer queixas da irmã ou o Zé das meninas, por causa de um telefonema para o carro de praça. A Silvéria, sempre doente, a marcar uma consulta por telefone no posto médico da Benfeita. Ah, e é claro, o Urbano com as suas lérias, era também um cliente bastante habitual... Contava-se então naquele dia, a passagem daquele desgraçado da Benfeita, deitado a estrebuchar no meio da rua, que, acometido de uma infernal dor de dentes e querendo ver-se livre dela, ali estaria a submeter-se a um arrancamento de um molar a sangue frio, feito por um curioso que também era o barbeiro, de torquez na mão... Calculem! E tudo isto ali mesmo, por onde as crianças a caminho da escola. Se calhar, horrorizadas! Se calhar, divertidas... 

 Cleo

Parece que ainda a estou a ver...


Parece que ainda a estou a ver... Em frente ao balcão que dava para a cozinha, sentada num banquito de madeira baixo, quase rente ao chão, mesmo de frente para forno de cozer a broa, no cantito entre o telheiro e o cimento que antes fora uma quintã. A minha avó, a afiar a faca já gasta no meio de tanto a afiar, no bordo do alguidar de alumínio, antes de começar a descascar as batatas para a mistura da sopa ou para acompanhar as sardinhas fritas da ceia. Ou até mesmo, as couves das galinhas que ficavam tão finas como se fossem para o caldo verde. Depois, o resto do tempo, passava-o a varrer com um pente de dentes finos, não os piolhos de outros tempos, mas a caspa que lhe estorvava no casco da cabeça e lhe provocava comichão... Daí a um pedaço, um entrançado de fios esbranquiçados, enrolados e presos num toutiço com meia dúzia de ganchos ao alto da cabeça. Depois, o triângulo negro do lenço compunha o resto. Guardava no bolso do avental o pente e esperava que a noite chegasse e a levasse de volta à cama, onde estendia os ossos perros em virtude do peso dos anos. 

Cleo